Ecce Homo foi o último livro escrito por Friedrich Nietzsche, com o subtítulo "Como alguém se torna o que é", onde fez uma reavaliação sobre si mesmo, comentando sobre seus hábitos, seus modos de vida, algumas de suas obras e seus conflitos. Destaca a importância das pequenas coisas, como a alimentação, o clima, o lugar e a distração para uma vida ativa e potente, descrevendo o modo como seus livros foram escritos e quais eram seus intuitos.
Este livro pode ser entendido como uma introdução sobre si mesmo, que foi escrito em três semanas, no final de 1888, onde apresenta sua filosofia como uma "arte da transfiguração", responsável por transmutar o sofrimento em filosofia e arte, uma prática que não se separa vida e obra, doença e saúde. Nietzsche exalta a transvaloração dos valores enquanto um processo de transformação pessoal, evidenciando a potencialidade de criar e viver para além de bem e mal.
Alguns trechos do livro:
Sou um discípulo do filósofo Dionísio, preferiria antes ser um sátiro a ser um santo.
Derrubar ídolos (minha palavra para "ideais") — isto sim é meu ofício. A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal... O "mundo verdadeiro" e o "mundo aparente" — leia-se: o mundo forjado e a realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos — a ponto de adorar os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro.
Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas, um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão há o perigo nada pequeno de se resfriar. O gelo está próximo, a solidão é monstruosa.
filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes — a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até agora baniu.
Aqui não fala nenhum "profeta", nenhum daqueles horrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados fundadores de religiões.
De fato, assim me aparece agora aquele longo tempo de doença: descobri a vida e a mim mesmo como que de novo, saboreei todas as boas e mesmo pequenas coisas, como outros não as teriam sabido saborear — fiz da minha vontade de saúde, de vida, a minha filosofia...
Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos: ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece. De tudo o que vê, ouve e vive forma instintivamente sua soma: ele é um princípio seletivo, muito deixa de lado. Está sempre em sua companhia, lide com homens, livros ou paisagens: honra na medida em que elege, concede, confia. Reage lentamente a toda sorte de estímulo, com aquela lentidão que uma larga previdência e um orgulho conquistado nele cultivaram — interroga o estímulo que se aproxima, está longe de ir ao seu encontro. Descrê de "infortúnio" como de "culpa": acerta contas consigo, com os outros, sabe esquecer — é forte o bastante para que tudo tenha de resultar no melhor para ele. — Pois bem, eu sou o oposto de um décadent: pois acabo de descrever a mim mesmo.
Tomar a si mesmo como um fado, não se querer "diferente" — em tais condições isso é a grande sensatez mesma.
Mas tenho necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre, leve, alegre...
Não gostaria de abandonar uma ação após tê-la cometido, preferiria deixar o mau resultado, as conseqüências, radicalmente fora da questão do valor. Quando as coisas resultam mal, perde-se muito facilmente o olho bom para o que se fez: um remorso parece-me uma espécie de olho ruim. Honrar mais ainda dentro de si o que dá errado, porque deu errado — isto sim está de acordo com minha moral.
A influência climática sobre o metabolismo, seu retardamento, sua aceleração, é tal que um equívoco quanto a lugar e clima pode não apenas alhear um homem de sua tarefa, como inclusive ocultá-la de todo: ele não consegue tê-la em vista.
Faltava um sutil "cuidado de si", a tutela de um instinto imperioso, era um nivelar-se a qualquer um, uma "ausência de si", um esquecimento da distância própria — algo que jamais me perdôo. Quando estava quase no fim, por estar quase no fim, pus-me a refletir sobre essa radical insensatez de minha vida — o "idealismo". Foi a doença que me trouxe à razão. —
A escolha na alimentação; a escolha de clima e lugar; — o terceiro ponto em que não se pode por preço algum cometer erro é na escolha de sua espécie de distração.
Não a dúvida, a certeza é que enlouquece... Mas é preciso ser fundo, ser abismo, filósofo, para assim sentir...
não podemos ser senão revolucionários — não admitiremos um estado de coisas em que o hipócrita predomine.
Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é.
eu, contra minha regra, minha convicção, tomo o partido dos impulsos "desinteressados": eles aqui trabalham a serviço do amor de si, do cultivo de si. — É preciso manter toda a superfície da consciência — consciência é superfície
essas pequenas coisas — alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo — são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se como importante. Nisto exatamente é preciso começar a reaprender.
Falta-me qualquer traço doentio; mesmo em tempo de severa doença não me tornei doente; em vão procure-se em meu ser um traço de fanatismo.
A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado.
Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo — todo idealismo é mendacidade ante o necessário — mas amá-lo...
Uma coisa sou eu, outra são meus escritos.
Não desejo ser confundido — para tanto, é preciso que eu mesmo não me confunda.
Em última instância, ninguém pode escutar mais das coisas, livros incluídos, do que aquilo que já sabe. Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência.
Quem acreditou haver compreendido algo de mim, havia me refeito como algo à sua imagem — não raro um oposto de mim, um "idealista", por exemplo; quem nada havia compreendido de mim, negou que eu tivesse de ser considerado.
Que em meus escritos fala um psicólogo sem igual é talvez a primeira constatação a que chega um bom leitor.
A doença libertou-me lentamente: poupou-me qualquer ruptura, qualquer passo violento e chocante. Não perdi então nenhuma benevolência, ganhei muitas mais. A doença deu-me igualmente o direito a uma completa inversão de meus hábitos; ela permitiu, ela me ordenou esquecer; ela me presenteou com a obrigação à quietude, ao ócio, ao esperar e ser paciente... (...) — Aquele Eu mais ao fundo, quase enterrado, quase emudecido sob a constante imposição de ouvir outros Eus, despertou lentamente, tímida e hesitantemente — mas enfim voltou a falar. Nunca fui tão feliz comigo mesmo como nas épocas mais doentias e dolorosas de minha vida.
Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo — de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem, sou dinamite. E com tudo isso nada tenho de fundador de religião — religiões são assunto da plebe, eu sinto necessidade de lavar as mãos após o contato com pessoas religiosas... Não quero "crentes", creio ser demasiado malicioso para crer em mim mesmo, nunca me dirijo às massas... Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem santo: perceberão por que publico este livro antes, ele deve evitar que se cometam abusos comigo... Eu não quero ser um santo, seria antes um bufão... Talvez eu seja um bufão...
Eu sou um mensageiro alegre, como nunca houve, eu conheço tarefas de uma altura tal que até então inexistiu noção para elas, somente a partir de mim há novamente esperanças.
Eu nego, por um lado, um tipo de homem que até agora foi tido como o mais elevado, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que alcançou vigência e domínio como moral em si — a moral de décadence, falando de modo mais tangível, a moral cristã.
deve-se principiar para compreender o que quer Zaratustra: esse gênero de homem que ele concebe, concebe a realidade como ela é: ele é forte o bastante para isso — ele não é a ela estranho, dela estranhado, ele é ela mesma, ele tem ainda em si tudo o que dela é terrível e questionável, somente então pode o homem possuir grandeza...
Certo é que lhe ensinaram sempre os valores de décadence como os valores supremos. A moral da renúncia de si é a moral de declínio par excellence (...) Essa única moral que até aqui foi ensinada, a moral da renúncia de si, trai uma vontade de fim, nega em seus fundamentos a vida.
A noção de "Deus" inventada como noção-antítese à vida — tudo nocivo, venenoso, caluniador, toda a inimizade de morte à vida, tudo enfeixado em uma horrorosa unidade! Inventada a noção de "além", "mundo verdadeiro", para desvalorizar o único mundo que existe — para não deixar à nossa realidade terrena nenhum fim, nenhuma razão, nenhuma tarefa! A noção de "alma", "espírito", por fim "alma imortal", inventada para desprezar o corpo, torná-lo doente — "santo" —, para tratar com terrível frivolidade todas as coisas que na vida merecem seriedade, as questões de alimentação, habitação, dieta espiritual, assistência a doentes, limpeza, clima!
Referência:
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.