O livro 'Heidegger & Ser e Tempo', escrito pelo filósofo e escritor brasileiro Benedito Nunes, comenta sobre a filosofia de Martin Heidegger, especificamente sobre sua obra mais conhecida e mais marcante de sua filosofia, 'Ser e Tempo', publicado em 1927.
Esse livro esmiúça a reflexão do filósofo sobre os sentidos mais profundos da existência humana, apresentando algumas das terminologias criadas por Heidegger, e a famosa "virada" em seu pensamento.
Esse livro esmiúça a reflexão do filósofo sobre os sentidos mais profundos da existência humana, apresentando algumas das terminologias criadas por Heidegger, e a famosa "virada" em seu pensamento.
Segue abaixo alguns fragmentos do livro:
As duas seções publicadas da primeira parte de Ser e tempo já compõem o perfil de uma ontologia fundamental, estudando, numa analítica, com base no método fenomenológico de Husserl, o homem do ponto de vista de seu ser, como Dasein.
Não era, pois, a existência humana, mas a questão do ser em geral a meta de Ser e tempo, que passou a considerar-se a questão de fundo, interesse, encargo ou destino do pensamento nos escritos de 1930 em diante, como, entre outros.
A primeira relação do pensamento à luz do problema do sentido do ser ali proposto se estabelecerá com a poesia e com a arte, não com a ciência, o que na segunda fase tem como pano de fundo o desenvolvimento tecnológico e o auge da secularização.
Reinterpreta-se a fenomenologia, ciência da consciência, na acepção de seu fundador, como um permitir ver o fenômeno, aquilo que se mostra por si mesmo uma vez liberado de seus encobrimentos.
O método se compatibiliza, pois, com a investigação do Dasein em si mesmo e por si mesmo.
E está em germe na noção mesma de Dasein a delimitação do método – a base que o legitima, que não é outra senão a compreensão do ser, na qual já nos encontramos ao iniciar a analítica, e que, portanto, detém um alcance pré-ontológico: o âmbito da existência humana a que se aplica e a temporalidade aonde chega e que a fundamenta.
Dasein é o ente que compreende o ser, o que significa compreendê-lo em sua existência e entender a existência como possibilidade sua, de ser ou de não ser si mesmo.
Mas o ponto de partida, para evitar a intromissão de conceitos previamente elaborados mas não aclarados, é a mediania banal da vida cotidiana, como o nível de interpretação corrente de si mesmo, dos outros e do mundo em que o Dasein já se encontra.
Seu objetivo não é proporcionar instrução espiritual, mas, partindo do plano existencial, pré-teórico, que sempre tem por fundo, determinar o complexo de estruturas (chamamo-las de existentivas para diferenciá-las do plano existencial, relativo à existência de cada qual) que constituem o Dasein, e nas quais repousa o sentido de seu ser.
O ser-à mão (Zuhanden) e o ser à vista (Vorhanden), ou seja, os entes acessíveis na práxis e os entes que se apresentam diante de nós como objetos substantes. O Dasein como ente é ser-no-mundo.
A relação com o mundo é um engajamento préreflexivo, que se cumpre independentemente do sujeito por um liame mais primitivo e fundamental do que o nexo entre sujeito e objeto admitido pela teoria do conhecimento. É mais uma região ontológica do que uma realidade dada.
Ser-no-mundo assinala a transcendência do Dasein e, como tal, constitui a estrutura da subjetividade. Não há sujeito sem mundo; não há homem sem Dasein.
Longe do plano contemplativo, o mundo que Heidegger focaliza preliminarmente, o mundo circundante, intercambia, na práxis cotidiana, as dimensões da vida ativa, o prático da ação, ao poético do produzir e do fabricar. Nossa primeira relação com o que nos cerca não é cognoscitiva, mas de lida, de trato, de manipulação: uma relação instrumental de acesso aos entes pela qual nos servem para isso ou para aquilo, cada qual sendo a serventia que prestam, o uso que fornecem. É o para quê do utensílio, a sua disponibilidade como ente à mão (Zuhande) numa experiência ante-predicativa, envolvente, de preocupação. O ente à mão é mais obra, como trabalho que se insinua enquanto existe.
O Dasein não habita o espaço, ele espacializa: abre o espaço que ocupa como ser no mundo. Preocupado em agir e fazer, e desta forma ocupado com ações e obras, o Dasein também cuida de outrem. Seja de maneira positiva, negativa ou indiferente, a existência não é só a minha existência, mas também a de outro, comigo compartilhada num ser-em-comum (Mitsein). Ser-no-mundo, o Dasein é igualmente ser com os outros, tendo nisso uma outra via de acesso ao mundo, capaz, no entanto, de subtrair-nos a nós mesmos, de englobar-nos nessa busca de si em que nos empenhamos como um poder estranho, superior, anônimo, impessoal
A carga afetiva indica a imersão (Befindlichkeit), que nos revela o nosso irredutível aí no mundo, onde já nos encontramos lançados. Esse ser lançado é correlativo ao projeto estadeado no compreender, que integra o conceito mesmo de existência, inseparável de seu poder-ser. Ambos, imersão e projeção, delineiam, como também o faz o discurso, enquanto meios de abertura o âmbito pré-teórico de nossa conduta. E cada modo de existência traz a compreensão de nós mesmos e do mundo.
Na angústia, diz-nos Heidegger, acompanhando Kierkegaard, o que nos ameaça não está em parte alguma.
O perigo que nos espreita e em toda parte nos acua é o mundo como mundo, originário e diretamente, que se abre para o Dasein desabrigado.
É afinal o Dasein mesmo que nos angustia, porque já sem a proteção do cotidiano, revelando-se, então, nesse sentimento; o poder-ser livre, a possibilidade de escolha, desapossado da familiaridade com o mundo, tornado inóspito. Angustiar-nos é não mais nos sentirmos em casa.
Nessas condições, fugimos continuamente da angústia, ameaçada pelo poder-ser si mesmo da existência.
O Dasein se desencobre como poder-ser. Mas sendo essa possibilidade sempre minha, ela seria a todo instante recuperável, a existência se prolongando infindamente. Mas desde o princípio o Dasein está predeterminado pelo seu fim.
Esquivo-me da morte no anonimato da gente. Fujo dela enquanto possibilidade própria. Mas se não fujo, exercito-me diante da mais extrema e radical possibilidade de mim mesmo.
É então que, compreendendo-nos livres, podemos ouvir a intimação desse poder-ser. A vocação convoca-nos à nossa liberdade, a um "querer ter consciência", que é o que escolhemos angustiadamente.
Pela decisão, recuamos do domínio estabilizado das normas à determinação da liberdade, com o que se desencobre o que é facticamente possível na situação em que já nos encontramos. A decisão alcança a verdade originária da existência, corno determinação da liberdade e forma germinal da ação.
O ser-para-a-morte e o poder-ser livre implicam, cada qual, a projeção do Dasein para fora de si mesmo, com o que a existência toma a configuração de um êxtase, de um movimento extático, que traça o perfil ontológico da temporalidade.
O Dasein só retrovém (passado) advindo (futuro) a si; e porque retrovém ao advir, é que gera o presente. Ai temos o movimento extático – o fora de si em si e para si mesmo da existência – que se chama de temporalidade.
O futuro, que puxa a cadeia dos êxtases, é uma antecipação; o passado, a retomada do que uma vez foi possível; e o presente, o instante da decisão.
Na verdade o passado ainda está presente, como mostra a retroveniência. O Dasein ainda é o passado sem deixar de ser presente. E no presente está comprimido o passado; como no passado antecipa-se o futuro.
Sua disponibilidade fica no mesmo plano da disponibilidade prática das coisas, que não nos são dadas como objetos da natureza, mas descobertas em sua serventia, ao alcance da mão.
Rege o intratemporal a preocupação com o mundo circundante; dominado pelo "presente" e sob a perspectiva do cotidiano, ele estende-se indefinidamente em cada "ago-ra". Nesse nível, portanto, o tempo é objeto de preocupação. A existência humana é por ele dividida.
É na temporalidade que se explicitam as estruturas existentivas todas, temos que concluir que a temporalidade, enquanto condição da existência como poder-ser, é a possibilidade da possibilidade.
A substância do homem é a existência e o Dasein é temporal: existe temporalizando-se, entre nascimento e morte. Sem a temporalização nenhum Dasein seria, e sem o Dasein não haveria mundo.
Eis o que impõe à sua existência a estrutura do acontecer (Geschehen), de que deriva a historicidade. Temporal no fundo de seu ser, o Dasein é histórico.
Por um lado o Dasein decide voltando-se para si mesmo, entregue à sua finitude; por outro, ao decidir, retrai-se, nos limites da experiência geracional de que participa, a uma herança comum. Quando autêntica, a decisão é o instante da retomada de possibilidades do passado, do que nele ainda permanece vivo.
A verdade dos enunciados científicos é sempre derivada de uma verdade mais originária, por sua vez estribada na verdade ontológica do desvelamento do ser, a que se refere o sentido da palavra alétheia.
O ser-no-mundo inverte o mesmo cogito. Ao "penso, logo sou", substitui-se o "sou no mundo, logo penso". Também as ciências, que estão suspensas à verdade originária, deslocam-se ao fundamento que a liberdade instaura, e confirmam a nossa finitude.
Como teoria, a ciência nasce da experiência antepredicativa. Sua origem é, portanto, extra-científica. Os conceitos fundamentais de uma ciência não são por ela mesma instaurados. As descobertas de sua investigação incidem sobre o já aberto do ser dos entes, que predelineia, no modo da projeção, a experiência constitutiva do mesmo domínio. Sendo a projeção uma possibilidade do Dasein, a abertura correspondente é um acontecer histórico.
A verdade originária que desvela o ente desocultando o ser.
A contraparte da abertura é o encobrimento. Sendo ambos, encobrimento e abertura, possibilidades existentivas, o Dasein fáctico, projetante e cadente, é, ao mesmo tempo descobridor e encobridor. Se assim é, ele está tanto na verdade quanto na não-verdade.
A alétheia comporta um desvelamento: o ente descoberto, que se mostra na proposição, é arrancado de suas coberturas. A verdade, então, é um existentivo. A verdade exige, constrange e dá razão de si mesma; ela tem a força de um pressuposto. E como pressuposto encerra uma exigência feita ao ente para que se revele.
A abertura do Dasein ao ser, que passará a chamar-se "clareira" (Lichtung) – o domínio do iluminado e do manifesto –, é reticulada, com zonas de sombra ou de ocultação, e o desvelamento, fatum da liberdade que possui o homem, é também, em si mesmo, simultaneamente, uma dissimulação ou retração.
Pensamento do ser e dizer poético se entrelaçam.
O ente cuja análise é nossa incumbência somos nós mesmos. O ser deste ente é em cada caso meu. No ser deste ente comporta-se ele relativamente ao seu ser. Como ente deste ser é entregue à responsabilidade de seu peculiar ser. O ser é neste ente o que está sempre em jogo.
A essência desse ente reside em seu para ser (Zu sein).A essência deste ente deve ser concebida, na medida em que dela se pode falar, a partir de sua existência.
Escolhemos o termo existência para designar o ser deste ente, este termo não tem e não pode ter a significação ontológica do termo tradicional existentia: existentia quer dizer ontologicamente ser-à-vista, uma forma de ser que por essência não convém ao ente que tem o caráter do Dasein. Evitamos a confusão usando sempre em lugar desse termo a expressão exegética ser-àvista e reservando o termo existência (Existenz) como determinação do ser para o Dasein.
A essência do Dasein está em sua existência. O que se pode extrair desse ente não são propriedades dadas de um ser-à-vista, mas modos de ser possíveis dele em cada caso e somente isso.
O Dasein é em cada caso sua possibilidade...
Mundo jamais é, mas acontece como mundo.
O ser-aí funda (erige) o mundo apenas enquanto se autofunda em meio ao ente.
A finitude do Dasein como seu fundamento. O conteúdo desse título inclui o problema da finitude no homem como elemento decisivo para possibilitar a compreensão do ser..
A angústia é o encontrar-se fundamental que nos coloca diante do nada.
Mundo só há se e por quanto tempo um Dasein existe. Pode haver natureza mesmo na ausência de todo Dasein. A estrutura do ser-no-mundo revela essa particularidade essencial do Dasein, a saber que ele se projeta um mundo, não depois e acessoriamente, mas de tal sorte que o projeto de mundo pertence ao ser do Dasein. Com esse projeto, o Dasein já sempre sai de si, ele existe (ex-sistere), ele é no mundo. É por essa razão que unca há alguma coisa como esfera interna. Se reservamos o conceito de "existência" ao modo de ser do Dasein, é porque o ser-no-mundo pertence a esse ser....
O Dasein só é intencional porque determinado, em sua essência, pela temporalidade... O tempo, como tempo apropriado/inapropriado, tem por caráter a significabilidade, quer dizer, esse traço que pertence ao mundo como mundo em geral. É por essa razão que nós designamos sob o nome de tempo do mundo (Weltzeit) o tempo com o qual nós contamos, o tempo ao qual nos entregamos.... O tempo comporta, também, além da significabilidade, um segundo momento: a databilidade. Cada "agora" é exprimido num presentificar, que vai de par com um estar na expectativa e um reter....
Referência:
NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.