O livro 'O que é bioética', de Debora Diniz e Dirce Guilhem, apresenta a bioética enquanto um discurso sobre a tolerância. O reconhecimento da pluralidade moral da humanidade e da ideia de que diferentes crenças e valores regem temas como o aborto, a eutanásia e a clonagem.
Esses temas geraram a necessidade da estruturação de uma nova disciplina acadêmica, que se coloca a refletir sobre esses conflitos frequentes no campo da saúde. O livro apresenta a bioética a partir das teorias e de críticas, o que permite ao leitor se familiarizar com o assunto e refletir sobre as situações de conflito moral.
Fragmentos do livro:
a bioética pode ser apresentada de várias maneiras. (...) há pelo menos três grandes abordagens: a historicista, a filosófica e a temática
A abordagem historicista seria a que remete o nascimento da bioética aos fatos e eventos passados que teriam contribuído para o seu surgimento – as pesquisas realizadas nos campos de concentração nazistas, as duas guerras mundiais e os tratados de direitos humanos seriam alguns dos exemplos mais citados.
a abordagem filosófica possui uma quantidade menor de adeptos, pois exige que seus representantes tenham certo domínio da história da filosofia, especialmente da filosofia moral,
abordagem temática é a mais comumente referida na bioética brasileira, já que, segundo os autores, “(...) a análise temática é a mais utilizada pelos iniciantes na bioética, especialmente por aqueles que ainda não dominam o conhecimento a ponto de argumentar suas ideias em termos filosóficos ou históricos.A abordagem temática permite uma compreensão do fazer bioético a partir de casos e/ou situações de vida que, nos últimos tempos, foram consideradas típicos dilemas da bioética
A abordagem temática é ainda hoje a dominante na bioética brasileira. (...) parte-se dos casos e dos conflitos morais para, secundariamente, se delinearem as ideias e propostas teóricas
Vários acontecimentos contribuíram para o surgimento da bioética. Seus pesquisadores reconhecem simbolicamente a obra Bioética: uma Ponte para o Futuro, de Van Rensselaer Potter, publicada em 1971, como um marco histórico importante para a genealogia da disciplina. Potter era um cancerologista estadunidense preocupado com a sobrevivência ecológica do planeta e com a democratização do conhecimento cientifico, tornando-se conhecido na bioética como autor de uma obra única.1 Apesar de hoje ser contestada sua paternidade sobre o neologismo, Potter ainda é uma referência fundamental para a história da bioética.
Bioética: uma Ponte para o Futuro, um livro baseado em artigos de sua autoria divulgados entre os anos 1950 e 1960: "...O que nós temos de enfrentar é o fato de que a ética humana não pode estar separada de uma compreensão realista da ecologia em um sentido amplo. Valores éticos não podem estar separados de fatos biológicos... como indivíduos nós não podemos deixar nosso destino nas mãos de cientistas, engenheiros, tecnólogos e políticos que esqueceram ou nunca souberam estas verdades elementares. Em nosso mundo moderno, nós temos botânicos que estudam plantas ou zoologistas que estudam animais, no entanto, a maioria deles é especialista que não lida com as ramificações de seu conhecimento limitado..."
Ou seja, a ponte para o futuro a que se referia Potter, a bioética, deveria ser uma disciplina capaz de acompanhar o desenvolvimento científico (para ele, basicamente, a biologia e seus derivados), com uma vigilância ética que ele supunha poder estar isenta de interesses morais. Para tanto, o autor propunha a democratização contínua do conhecimento científico como única maneira de difundir esse olhar zeloso da ética. (...) O importante da proposta futurista de Potter é a ideia de que a constituição de uma ética aplicada às situações de vida seria o caminho para a sobrevivência da espécie humana. E, mais curioso ainda: para essa ciência da sobrevivência não seria preciso um conhecimento rigoroso da técnica, mas sim respeito aos valores humanos. Para Potter, a proposição do termo bioética enfatizava os dois ingredientes considerados os mais importantes para alcançar uma prudência que ele julgava necessária: o conhecimento biológico associado a valores humanos. Essa proposta de Potter de associar biologia (entendida, em sentido amplo, como o bem-estar dos seres humanos, dos animais não humanos e do meio ambiente) e ética é o que, hoje, se mantém como o espírito da bioética.
De qualquer forma, afora a solitária clarividência de Potter, é importante reconhecer quais foram as transformações dos anos 1960, especialmente nos contextos social, político e tecnológico, que impulsionaram o nascimento da bioética. (...) os anos 1960 foram também a era da conquista dos direitos civis, o que fortaleceu o ressurgimento de movimentos sociais organizados, como o feminismo, o movimento hippie e o movimento negro, entre outros grupos de minorias sociais, promovendo, com isso, um revigoramento dos debates acerca da ética normativa e aplicada. Esses diferentes movimentos sociais adotaram como bandeira e trouxeram à tona questões relacionadas à diversidade de opiniões, ao respeito pela diferença e ao pluralismo moral. No entanto, paralelamente ao processo de crítica moral desencadeado pelos grupos sociais, houve importantes transformações em instituições já tradicionais. como os padrões de família, as crenças religiosas e até mesmo a socialização formal das crianças por meio das escolas.
Ainda nesse período inicial de surgimento, dois outros acontecimentos contribuíram para que a bioética fosse definida como um novo campo disciplinar: as denúncias, cada vez mais frequentes, relacionadas às pesquisas científicas com seres humanos, um tema fortemente impulsionado pelas histórias de atrocidades cometidas por pesquisadores nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial.
O Comitê de Seattle, como ficou conhecido, tinha o objetivo de definir prioridades para a alocação de recursos em saúde. Uma de suas primeiras medidas foi a seleção, dentre os pacientes renais crônicos, daqueles que poderiam fazer parte do programa de hemodiálise recém-inaugurado na cidade. Como havia um número de pacientes superior à disponibilidade de máquinas, os médicos optaram por delegar os critérios de seleção de atendimento para um pequeno grupo de pessoas, basicamente todos leigos na medicina. Cabia a esse grupo eleger critérios não-médicos de seleção para o tratamento. De uma forma inusitada, então, o processo de decisão médica passou para o domínio público. Para Jonsen, esse, mais que qualquer outro evento, assinalou a ruptura entre a bioética e a tradicional ética médica, supostamente um conhecimento de domínio exclusivo do profissional de saúde e, mais especificamente, do médico.
Alguns exemplos perversos de pesquisas, conhecidos na literatura médica pelo ordenamento numérico original de Beecher, ficaram famosos, como o exemplo 2, que consistia na retirada intencional do tratamento à base de penicilina em operários com infecções por estreptococos para permitir o estudo de meios alternativos de prever as complicações. O fato é que os homens não sabiam que estavam sendo submetidos a uma experiência, e o risco de contrair a febre reumática era altíssimo, a tal ponto que 25 deles desenvolveram a doença.
No exemplo 17, médicos pesquisadores injetaram células vivas de câncer em 22 pacientes idosos e senis hospitalizados, sem comunicá-los que as células eram cancerígenas, com o objetivo de acompanhar as respostas imunológicas do organismo. Em consequência desses e de outros exemplos de má pesquisa científica, Beecher constatou que, de 100 pesquisas envolvendo seres humanos publicadas no decorrer do ano de 1964 em um excelente periódico científico, um quarto revelava maus-tratos ou violações éticas, seja em relação aos pacientes, seja em relação à condução dos protocolos.
Além dos maus-tratos com os sujeitos de pesquisa, a análise de Beecher permitiu o desvendamento de outro dado impressionante: dos 50 artigos compilados originalmente para o estudo, somente dois apresentavam, como parte do protocolo de pesquisa, o termo de consentimento dos sujeitos participantes do experimento. Diante desse dado, Beecher propôs que toda e qualquer experimentação com seres humanos deveria respeitar, primeiramente, a necessidade de obtenção do termo de consentimento informado e, em seguida, o compromisso do pesquisador de agir de forma responsável. Foi assim que os números e os dados de Beecher, além do óbvio mérito denunciatório, tiveram um efeito secundário inesperado: demonstraram que a imoralidade não era exclusiva dos médicos nazistas, tal como os novos cientistas acreditavam.
O Caso Tuskegee, como ficou conhecido, é seguramente um dos exemplos mais perturbadores utilizados pelos pesquisadores da bioética como referência para os abusos realizados em nome da ciência e do progresso. A pesquisa era conduzida pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos (U.S. Public Health Service – PHS), ou seja, um órgão sanitário oficial do país, e consistia em acompanhar o ciclo natural de evolução da sífilis em sujeitos infectados. Desde meados dos anos 1930 até o início dos anos 1970, 400 pessoas negras portadoras de sífilis foram deixadas sem tratamento (utilizava-se apenas placebo), no intuito de identificar a história natural da doença ou, nas palavras de Rothman, “...a desculpa esfarrapada dos dirigentes do PHS era de que com o advento dos antibióticos ninguém mais poderia tornar a traçar os efeitos de longo prazo da sífilis...”. Vale lembrar que a penicilina, medicamento fundamental para o tratamento da sífilis, já havia sido descoberta, com uso corrente no tratamento da enfermidade. Os participantes da pesquisa sequer foram informados de que estavam sendo submetidos a um experimento, não lhes sendo oferecida a alternativa do tratamento convencional. A denúncia desse caso forçou a opinião pública a perceber que nem tudo estava moralmente correto no campo da ciência, da tecnologia e da medicina.
Em 1967, Christian Barnard, um cirurgião cardíaco da África do Sul, transplantou o coração de uma pessoa quase morta em um paciente com doença cardíaca terminal. Esse acontecimento provocou grande balbúrdia na mídia internacional. O nó da questão girava em torno da origem do órgão, pois a comunidade médica se perguntava como Barnard poderia garantir que o doador estaria realmente morto no momento do transplante. A situação levou a Escola Médica da Universidade de Harvard, em 1968, a procurar definir critérios para a morte cerebral, a fim de controlar casos semelhantes a esse. Os preceitos foram divulgados somente em 1975, mas ainda hoje são a referência para o debate internacional sobre morte encefálica. Para a maioria das pessoas, sejam elas profissionais de saúde ou leigos na medicina, o conceito de morte cerebral, apesar de não ter alcançado a unanimidade esperada, foi aceito como modelo oficial de morte clínica.
Por ser a bioética um campo disciplinar compromissado com o conflito moral na área da saúde e da doença dos seres humanos e dos animais não-humanos, seus temas dizem respeito a situações de vida que nunca deixaram de estar em pauta na história da humanidade. Mudaram-se apenas certas especificidades em decorrência da tecnologia e do progresso da ciência.
Talvez, no que se refere à pesquisa biomédica, um elemento decisivo para essa mudança de mentalidade tenha sido a formação de um discurso crítico com relação à pesquisa científica, não aceitando mais a premissa de que o desenvolvimento da ciência estaria acima de qualquer suspeita para o bem-estar e a saúde da humanidade. Começaram, portanto, a surgir dúvidas, dos pontos de vista ético, jurídico, econômico e mesmo político, sobre certos avanços relacionados à experimentação humana, ao controle comportamental, à engenharia genética, à saúde reprodutiva, ao transplante de órgãos, dentre tantos outros temas atualmente analisados pela bioética.
O declínio de tal ética, um código moral marcado pelo autoritarismo do médico e baseado nos princípios do juramento hipocrático, tradicionalmente ensinados aos jovens médicos ao lado do leito do paciente, pontuou o nascimento de um novo período, em que as referências morais do médico deveriam ser consideradas apenas como suas preferências de bem-viver, e não a saída ética para o conflito. Foi assim que, no momento em que a “...medicina estava cada vez melhor, mas que os pacientes estavam cada vez piores...”, a ruptura com o padrão da ética à beira do leito permitiu o surgimento da bioética como uma instância mediadora e democrática para os conflitos morais.
Fonte:
DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense. 2002.