A divisão entre homens e mulheres é produto da cultura ou é uma divisão natural, com raízes biológicas? Se for uma diferença natural, quais as explicações biológicas para a primazia dos homens sobre as mulheres na cultura ocidental moderna?
Em muitas sociedades, as mulheres eram tidas como mera propriedade dos homens, principalmente do pai, marido ou irmão. O estupro, em muitos sistemas jurídicos, era tratado como violação de propriedade – em outras palavras, a vítima não era a mulher estuprada, mas o homem a quem ela pertencia.
Nesse caso, a sentença era a transferência de propriedade – o estuprador era obrigado a pagar o valor de uma noiva ao pai ou ao irmão da mulher, e a partir de então ela se tornava propriedade do estuprador. Estuprar uma mulher que não pertencia a nenhum homem não era considerado crime.
Ser marido era ter controle absoluto da sexualidade da esposa, era inconcebível a ideia do marido 'estuprar' a esposa, ou seja, praticar sexo sem consentimento. Dizer que um marido 'estuprou' sua esposa era tão absurdo como dizer que uma pessoa roubou a própria carteira.
Esse tipo de pensamento não se limitava ao antigo Oriente Médio. Em 2006, ainda haviam 53 países onde o marido não podia ser processado por estuprar a esposa. Até mesmo na Alemanha, as leis de estupro foram modificadas apenas em 1997, criando-se uma categoria jurídica específica para o estupro conjugal.
Algumas das disparidades culturais, jurídicas e políticas entre homens e mulheres refletem as diferenças biológicas óbvias entre os sexos. A atividade de gerar uma criança sempre foi trabalho das mulheres, porque os homens não têm útero. Com base nessa condição, cada sociedade agregou normas culturais que pouco têm relação com a biologia, ou seja, foram associados à masculinidade e à feminilidade uma série de atributos que, em sua maioria, não possuem base biológica alguma.
Na Atenas do século V a.C., por exemplo, a mulher não tinha status jurídico independente e era proibida de participar de assembleias populares ou ser uma juiz. Com poucas exceções não podia se beneficiar de uma boa educação nem se envolver em negócios ou discursos filosóficos. Nenhum dos líderes políticos de Atenas, nenhum de seus grandes filósofos, oradores, artistas ou mercadores era mulher.
Na Atenas atual as mulheres votam, são eleitas para cargos públicos, fazem discursos, projetam joias, edifícios e softwares, e frequentam universidades. Sua condição biológica não as impede de fazer nenhuma dessas atividades. Não existe nenhuma barreira jurídica à sua participação na política, e grande parte dos gregos dos dias de hoje considera perfeitamente normal que uma mulher ocupe um cargo público.
Muitos gregos da atualidade acreditam que uma característica de ser homem é se sentir sexualmente atraído apenas por mulheres e ter relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto. Eles enxergam isso como uma condição biológica, porém muitas outras culturas humanas entendem as relações homossexuais como algo não apenas legítimo como até mesmo socialmente construtivo. Na Grécia Antiga, a prática do homossexuais e bissexuais entre homens era visto como natural.
Enquanto seres humanos temos o costume de naturalizar o que é apenas cultural e característico de um período. A questão é que a biologia permite uma porção de possibilidades e modos de ser, enquanto que a cultura proíbe e limita nossa ação, de acordo com suas regras e normativas específicas, que se transformam de tempos em tempos.
A cultura e a moral geralmente argumentam que proíbem apenas o que "não é natural". Porém, de acordo com a perspectiva biológica, não existe nada que não seja natural. Tudo o que é possível biologicamente é, por definição, também natural. Um comportamento que realmente não fosse não natural, ou seja, que vá contra as leis da natureza e as condições físicas dos seres humanos, não precisaria de proibição, pois simplesmente não teria como ocorrer. Nenhuma cultura se deu ao trabalho de proibir que os homens fizessem fotossíntese, ou que as mulheres corressem mais rápido do que a velocidade da luz.
Os conceitos que temos habitualmente por "natural" e "não natural" não são de acordo com a biologia, mas com a teologia cristã. Natural, segundo a biologia, seria "de acordo com a natureza", mas, de acordo com a teologia cristã, "natural" significa "de acordo com as intenções de Deus". Os teólogos cristãos acreditam que Deus criou o corpo humano com a intenção de que servisse a um propósito em particular. Se usamos nosso corpo para o propósito de Deus, entende-se como uma atividade "natural", se usamos de maneira diferente, é tido como "não natural".
A maior parte das leis, normas, direitos e obrigações que definem as diferenças entre a masculinidade e a feminilidade refletem mais a construção cultural do que a natureza biológica. O papel do "homem" e da "mulher" na sociedade são definidos de acordo com categoriais sociais, não biológicas, portanto não naturais.
Atualmente os estudiosos costumam distinguir entre "sexo", que corresponde a uma categoria biológica, e "gênero", que se trata de uma categoria cultural. O sexo se divide em masculino e feminino, e as características dessa divisão são objetivas e permaneceram as mesmas ao longo da história. Mas, de acordo com o gênero, as características "masculinas" e "femininas" dependem da cultura onde estão inseridas e estão em constante transformação.
A maior parte das características e qualidades atribuídas ao masculino e ao feminino são culturais, e não biológicas. A cultura pode se transformar de acordo com mudanças no ambiente ou por meio da interação com outras culturas, mas também por transformações decorrentes de sua própria dinâmica interna. Diferentemente das leis da física, que estão livres de inconsistências, toda ordem criada pelo homem é cheia de contradições internas.
Referência:
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade. tradução Janaína Marcoantonio. 1. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.