O livro 'Kierkegaard', oferece um convite ao estudo da obra deste filósofo, cujo pensamento se baseia no diálogo com o leitor, colocando enigmas e propondo alternativas, para que cada indivíduo dirija o olhar para sua própria existência.
Escrito por Jorge Miranda de Almeida e Alvaro L. M. Valls, foi publicado em 2007 e faz parte da coleção 'Filosofia - Passo-a-passo', número 78, da editora Jorge Zahar Editor. Segue abaixo alguns fragmentos da amostra da obra, disponível no site da Amazon.
O enigma Kierkegaard é único. Mesmo que a existência seja comum a todos, a construção do existir depende da coragem e da ousadia, que se traduzem em risco e angústia no concretizar ou não a tarefa que lhe foi confiada.
O enigma seduz, angustia, dilacera com suas contradições existenciais, sua refinada ironia, sua esperança de retirar o homem comum do anonimato da multidão. Ele nos provoca e nos convida a irmos até o fundo de nós mesmos, para que possamos, com todo risco que a decisão do salto comporta, encontrar o Inefável. Penetrar no fundo de si mesmo é constatar a singularidade da vida, concretizar-se como uma individualidade. Singularidade que não é um eu sozinho, despersonalizado, narcisista. Pelo contrário, é um eu-tu, porque é sempre um eu-relação. Kierkegaard é póstero. Profeta da individualidade, num tempo em que as aldeias globais e os sistemas cosmopolitas negam a individualidade e transformam tudo e todos numa heterogeneidade homogênea, numa sociedade sem identidade, sem autenticidade, sem alma.
Na melancolia opera-se a crise de fé, e ele descobre um cristianismo proposto por Cristo, diferente do da Cristandade.
A Cristandade é “uma fantástica miragem, uma máscara, uma palhaçada, abrigo de todas as alucinações”.
A abrangência dos temas, a variedade dos pseudônimos, os jogos, as ambigüidades e as contradições — estratégicas — dificultam a construção de uma classificação objetiva da obra e constituem verdadeiro labirinto, onde se entra por qualquer porta (qualquer livro), mas de onde não é fácil sair. Talvez fosse uma tática do autor para impedir que enquadrassem sua obra num corpo sistemático de doutrina. Sua filosofia é um coro que necessita de vozes diferentes, contrapostas, para daí surgir a perfeição de uma harmonia.
o observador, o psicólogo da alma ou do caráter humano estudou a fundo as contradições da condição ou natureza humana. Pode-se afirmar que Kierkegaard constrói uma verdadeira galeria metódica e ordenada dos diversos tipos humanos. Estão presentes: o cavaleiro da fé, o juiz ético-burguês, o homem da dúvida, o desesperado, o romântico sedutor, o erótico-sensual, o cavaleiro da resignação, o espiritual-demoníaco, cada um e todos eles com a função de servir de espelho para o leitor. O objetivo não é ver o espelho, mas enxergar-se nele, transferindo ao leitor a tarefa de aprofundar-se e tomar as decisões fundamentais que a existência requer.
Kierkegaard assume a “responsabilidade jurídica e literária” do conteúdo expresso pelos pseudônimos e até pede que se alguém vier a citar um texto, tenha a cortesia de o citar com o nome do respectivo pseudônimo.
Os pseudônimos têm caráter, psicologia própria, individualidade, numa crítica aos intelectuais que se esquecem de existir e só “pensam sobre” a existência.
O conhece-te a ti mesmo, do grego, deveria ser traduzido numa filosofia prática, não em pura teoria, sendo conveniente, portanto, utilizar um verbo que indicasse a eleição, o querer ser si mesmo.
são investigações sobre o sentido da vida e do mundo, reflexões existenciais que, quando empregam categorias religiosas, sempre as usam condicionalmente: se o leitor, ou melhor, ouvinte (pois discurso se pronuncia em voz alta) crê nelas, então que tire as suas conclusões lógicas. O autor não “prega”.
O patriarca, Pai da fé, não pode falar a verdade, como exigia Kant, e se relaciona diretamente com um Absoluto, que transcende a ética, de modo a contrariar os sistemas idealistas e racionalistas.
A repetição. Seu título e sua temática apresentam um conceito-chave kierkegaardiano, distinguindo de uma repetição mecânica uma outra que é retomada, reprise ou recomeço da mesma coisa em novas condições.
O enredo do texto tornar-se-á um topos característico do autor dinamarquês: um jovem rompe seu noivado e busca orientação com um psicólogo experimentador (Constantin Constantius, que antecipa a figura de outro psicólogo, dos Estádios no caminho da vida, de 1845, Frater Taciturnus).
Vigilius Haufniensis redige O conceito de angústia, um estranho e exigente tratado de “psicologia” (antropologia filosófica) sobre a liberdade humana, tendo no horizonte a questão dogmática do pecado hereditário.
Ele deve partir da premissa de que homem e verdade iniciam separados, de modo que o mestre e o instante do encontro adquirem um valor absoluto. Encontrar ou não a verdade torna-se questão vital, problema existencial. O mestre teria de ser uma espécie de “fato absoluto”, dado histórico que transcende os tempos, sendo apropriado falar da historização do eterno e da eternização da história. Kierkegaard personificava os problemas, hipostasiando-os em figuras conhecidas (Don Juan, Fausto, o Judeu Errante e Abraão). Haufniensis trabalha com a figura de Adão e dos homens posteriores, estuda a liberdade, condição de possibilidade daquilo que os teólogos costumam chamar “pecado”. Como pode um pecado ser hereditário? Como é ou deve ser a liberdade de um ser consciente capaz de pôr um tal pecado? Qual a função da angústia, nesse processo individual e histórico? Surge uma antropologia dialética, que vê o homem como o fruto da síntese de tempo/eternidade ou finitude/infinitude.
Daí a tendência a se interpretar o pensamento de Kierkegaard pelo esquema de uma teoria de três estádios, que não é estrutural na obra. Tanto isso é verdade que alguns dos principais títulos abstraem desse esquema, que também pode ser binário (o estético de um lado e o ético-religioso do outro) ou quaternário (com a religiosidade paradoxal constituindo um quarto estádio). O termo “estádio” lembra um percurso, trecho, etapa (não são estágios).
O Postscriptum desenvolve a noção do pensador subjetivo, que não é subjetivista. A célebre frase “a subjetividade é a verdade” é confrontada logo com outra, que diz o mesmo de modo mais profundo: “A subjetividade é a inverdade.” Isto é, só na subjetividade podem ocorrer a verdade e a inverdade. Verdade é sempre verdade para alguém. Mais: a verdade verdadeira não é só teórica, também é prática e edifica, constrói sobre fundamentos. Climacus afirma o conceito central do indivíduo (den Enkelte, em alemão der Einzelne), que não equivale ao simples elemento avulso (Individ), repetido na multidão. O indivíduo verdadeiro é único “diante de Deus”, responsável por si mesmo, não cria a si mesmo (à moda sartriana), mas é “um redator responsável”.
Referência:
ALMEIDA, Jorge Miranda de; Alvaro L. M. Valls. Kierkegaard. Rio de janeiro: Zahar, 2007.
Referência:
ALMEIDA, Jorge Miranda de; Alvaro L. M. Valls. Kierkegaard. Rio de janeiro: Zahar, 2007.