Uma terapia a partir de Nietzsche

Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão que se autodenominou 'psicólogo', sua psicologia consistia num diagnóstico da decadência que assola a cultura e a humanidade ocidental, por meio de uma genealogia da moral, propondo uma transmutação dos valores, favorecendo a afirmação e potencialização da vida, ao invés de sua negação.

Em suas obras ele colocou em questão os valores da cultura ocidental, a filosofia e a moral tradicional, criticando as diversas formas de imposição de modos de vida, de condutas e de verdades. Suas críticas partem de uma análise sobre os costumes, a moral e a tradição, voltando-se para as questões humanas ao invés de buscar verdades metafísicas. Sua obra influenciou e influencia muitos dos psicólogos da contemporaneidade.

Para propor uma terapia a partir Nietzsche, é preciso inicialmente apresentar sua filosofia, que não visava elaborar um sistema de verdade, mas colocar em questão os distintos sistemas de verdade, compreendendo uma multiplicidade de perspectivas, ao invés de uma verdade única e universal. Sua filosofia propõe valorizar a experiência concreta ao invés da abstração metafísica, encarando a vida tal como acontece, ao invés de buscar um ideal.

"Inesgotados e inexplorados estão ainda o homem e a terra do homem."
(Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')

Segundo o filósofo, a moral tradicional se baseia na repressão dos instintos primários, enfraquecendo nossa potencialidade criadora, reduzindo as pessoas a meras reprodutoras de um sistema moral, de uma verdade e modos de vida engessados. Em sua genealogia, ele constata que esse modo de vida submisso, acomodado e repetido, que serve a um propósito do além, ao invés de experimentar a vida do aquém, desvalorizou a vida terrena e promoveu uma falta de sentido.

Nietzsche constatou que a humanidade caminha para sua decadência, por negar a vida terrena e a potência criadora em nome de uma vida "eterna" e "ideal". As promessas e os ideais de "felicidade eterna" e de uma vida além impedem que as pessoas vivam e experimentem de maneira alegre e criativa a vida do aquém. Portanto, sua psicologia propõe, de início, um questionamento sobre os valores que sustentam nossos modos de vida.

A decadência consiste justamente na inversão dos valores da vida, que no decorrer da história do ocidente passou a valorizar a racionalidade, a objetividade, a ordem, a forma, a medida, a seriedade, ao invés das emoções, das paixões, do corpo, dos impulsons, da desmedida e dos desejos. Os instintos passaram a ser vistos como algo que deveria ser combatido, ao invés de apropriados, caminhando para a decadência, uma doença que nega o corpo em favor da ordem e da repetição.

"Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido - ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria."
(Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')

O grande valor atribuído à razão foi suprimindo o contato com as emoções, com o corpo e com os saberes instintivos. Uma terapia com base em Nietzsche deve possibilitar que cada pessoa possa faça uma revisão de seus valores, daqueles que fazem bem e dos que não fazem, para que esta possa ir de encontro aos que potencializam sua experiência de vida, se distanciando dos que inferiorizam, aproximando-se de seus afetos e de seu corpo, se abrindo à novas experimentações e formas de vida.

O primeiro passo consiste na genealogia dos valores de uma pessoa, de modo a constatar aqueles que expandem e os que contraem sua experiência de vida, entendendo que não  somos submissos a valores já dados, mas seres criadores de valores e de modos de vida, de modo que podemos transvalorar. Os valores que não possibilitam a ampliação podem ser trocados por valores potencializantes, por meio da experimentação, que não acontece apenas em nível racional, mas por meio dos sentidos, dos impulsos e do corpo.

A filosofia de Nietzcshe retoma o valor dos afetos e das paixões, entendendo como favoráveis a uma vida mais intensa e potente. Não se entende a saúde como um estado de paz e ausência de emoções ou sofrimentos, pelo contrário, a saúde está relacionada com a possibilidade de emocionar-se com a vida, e também com de criar e assumir valores potencializadores da experiência de vida. O diagnóstico desses funcionamentos parte sempre do corpo, da análise de seus afetos e desafetos.

"Tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial. O corpo é um fenômeno muito mais rico e que autoriza observações mais claras. A crença no corpo é bem melhor estabelecida do que a crença no espírito."
(Nietzsche, em 'Fragmentos Póstumos')

Uma terapia nietzschiana reconhece a possibilidade de cada pessoa transformar seus valores para a expansão de sua existência, afirmando a vida em sua beleza e em seu caos, experimentando seus riscos. O reconhecimento e a aceitação do caótico, do triste e do trágico é também um ponto importante de sua psicologia trágica, pois entende que a vida não é feita apenas de momentos alegres e saúde, mas também de loucuras e melancolia. A experiência de sofrimento pode potencializar a experiência de saúde, para isso é preciso avaliar e transmutar valores.

Por Bruno Carrasco.

Referências:
GONÇALVES, Bruno. Nietzsche e a Psicologia: uma proposta de psicoterapia nietzschiana. In: Valdemar Augusto Angerami. (Org.). Psicoterapia fenomenológico-existencial. 2ed. Belo Horizonte: Artesã Editora, 2017, p. 243-264.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.

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