Angústia e má-fé em Sartre

A liberdade é a possibilidade de fazer escolhas. Somos livres, pois fazemos escolhas a todo momento, e não há como não fazer. Agora mesmo você está escolhendo fazer essa aula, mas pode, a qualquer momento, deixar disso e se dedicar a outra atividade.

É, portanto, uma condição da existência humana que acontece sempre em situação e em relação. Para Sartre, o ser humano está "condenado a ser livre", pois não escolhe ser livre, e precisa a todo momento escolher o que fazer de sua vida, sendo responsável pelas escolhas que fizer.

Toda pessoa pode, em certo sentido, e de acordo com suas possibilidades e com condições externas, escolher o que faz de si mesma, a todo momento de sua existência. Somos livres para fazer escolhas e direcionar a nossa existência de acordo com nossas condições e possibilidades.

Porém, não temos nenhuma garantia sobre o caminho que escolhemos seguir, de modo que toda escolha é um risco, e isso nos gera a sensação constante de angústia. Quando percebo que sou eu a única pessoa responsável por fazer as escolhas em minha vida, posso me sentir desamparado.

Mesmo que outras pessoas me ajudem a escolher, seja por meio de conselhos ou indicando o que, para eles, é o melhor a ser feito, a escolha final será sempre a minha.

Portanto, escolher trata-se de um constante confronto com a nossa existência, com o que faremos dela a cada instante. E a escolha nem sempre é algo agradável e desejado, pode ser difícil e inclusive muito angustiante escolher a todo momento.

Uma das primeiras consequências da liberdade é justamente a angústia, que ocorre quando tomamos a consciência da nossa possibilidade de escolher, e que nossas escolhas constroem a pessoa que estamos sendo.

A angústia é uma espécie de medo ou temor que não é direcionado a um objeto específico, mas que se volta para si mesmo. Trata-se de uma reação da consciência da contingência e da liberdade, de que a vida não possui um sentido prévio, mas que somos nós que a fazemos, e inclusive de que somos responsáveis por nossas escolhas.

"O indivíduo se angustia pois se vê na situação de escolher sua vida, seu destino, sem buscar orientação ou apoio em ninguém. Sente-se desamparado."
(Penha, em ‘O que é existencialismo’)

No livro ‘A Náusea’, de Sartre, publicado em 1938, o personagem principal, Antoine Roquentin é tomado por um sentimento de náusea, quando percebe que nada no mundo acontece por necessidade. Trata-se do momento em que ele constata que tudo é contingente, ou seja, que tudo poderia ter acontecido de outra maneira, e se sente horrorizado com essa constatação.

O personagem atravessa alguns momentos de alívio, por exemplo, quando no bar que ele costumava frequentar toca uma de suas músicas favoritas. Cada nota leva à seguinte, isso lhe dá a impressão que nada poderia ser diferente, faz parecer que a canção tem, portanto, necessidade, e isso faz com que ele sinta que sua existência também assim seja.

Tudo lhe parece muito bem e equilibrado, inclusive quando ele leva o copo de cerveja a sua boca, que segue numa curva harmoniosa e volta-o na mesa sem derramar. Seus gestos e sua percepção seguem como as de um atleta ou de um músico, até que a música termina e tudo volta a se despedaçar, volta-se a sentir desamparado na gratuidade.

A responsabilidade é a primeira decorrência da constatação de nossa liberdade de escolhas, que nos faz eticamente responsáveis, enquanto co-autores de nossa existência e do mundo. Inclusive, toda escolha que fazemos afeta outras pessoas.

Ao escolher, cada pessoa escolhe também para todos os outros seres humanos, sendo assim corresponsável pelo mundo em que vive, sendo por ele transformado, ao mesmo tempo em que o transforma.

"Mas se realmente a existência precede a essência o homem é responsável pelo que é. Assim, a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência."
(Sartre, em ‘O existencialismo é um humanismo’)

Nem sempre nos sentimos a vontade com a possibilidade de escolher, muitos preferem evitar a responsabilidade de suas escolhas e atribuem essa incumbência a outras pessoas, a uma norma social, ao passado, a astrologia, a uma herança biológica, a uma religião, ao acaso, a um partido político, a uma tradição de família, etc.

Sartre chama isso de má-fé, que acontece quando faço uma escolha e me faço crer que fiz essa escolha por conta outra coisa, pessoa ou circunstância, ou regra moral.

"Devemos realizar este ato de fé: criar o significado em que buscamos viver. Cada ato, então, que não esteja comprometido por uma forma do que Sartre chama ‘má-fé’, pode ser visto como um tipo de fé: como um compromisso de agir diante do ‘nada’ e de não fingir que as coisas são impostas ou exigidas."
(Reynolds, em ‘Existencialismo’)


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
PENHA, João da. O que é existencialismo. Brasiliense: São Paulo, 2014.
REYNOLDS, Jack. Existencialismo. Tradução: Caesar Souza. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Tradução: João Kreuch. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
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