O que é Loucura - Frayze-Pereira

O livro O que é Loucura, escrito por João Frayze-Pereira, explora brevemente distintos entendimentos sobre a loucura, contrastando as perspectivas da ciência, de culturas antigas e diferentes, apresentando a partir da medicina, da psiquiatria, da história, do senso comum e da etnopsiquiatria, constatando que "o vínculo entre loucura e patologia não é universal".

Deste modo, é possível pensar a loucura enquanto parte integrante da própria razão, algo difícil de aceitar no contexto científico positivista, que tende a classifica-la como doença mental ou desvio social. Segundo o autor, a determinação dos estados "normal" e "patológico" está mais relacionada com a cultura e a sociedade, do que com a ciência ou a psiquiatria.

Alguns trechos do livro:

Por um lado, temos a loucura concebida e particularizada como uma experiência corajosa de desvelamento do real, de desmontagem e recusa do mundo instituído: a loucura é saber. De outro lado (e esta é a tendência mais forte), temos a loucura descrita como uma falha da forma pessoal, consciente, normal, equilibrada e sadia de ser, um desvio do grupo social: o louco é perigoso para os outros, senão para si mesmo. Esses pontos de vista, que alguns especialistas (médicos, cientistas sociais e filósofos) chegam a assumir, são discutíveis.

Com efeito, crer numa loucura localizada no indivíduo e emprestar ao louco uma vestimenta que o transfigura em monstro não só tende a retirar-lhe o estatuto de humanidade, como também a nos fazer esquecer que algo se diz através da loucura.

É preciso ficar claro que as duas perspectivas teóricas indicadas — a organicista e a psicofuncional — são cúmplices. Ambas pressupõem logicamente uma norma objetiva de saúde que permita avaliar as doenças. No caso da primeira, essa norma estaria inscrita no bom funcionamento fisiológico do organismo. No caso da segunda, em uma harmonia natural das relações entre funções psíquicas. No entanto, é tão difícil definir a saúde ou esse estado normal da matéria orgânica cuja alteração objetiva gera a loucura como determinar a priori a personalidade ideal.

Portanto, o indivíduo é doente sempre em relação: em relação aos outros, em relação a si mesmo. Isto significa que o próprio da loucura como "doença mental", conforme a expressão médica, é ser rebelde a uma definição positiva. Em outras palavras, é teoricamente muito difícil, senão impossível, definir a loucura em si mesma, como um fato isolado.

designa-se louco o indivíduo cuja maneira de ser é relativa a uma outra maneira de ser. E esta não é uma maneira de ser qualquer, mas a maneira normal de ser. Portanto, será sempre em relação a uma ordem de "normalidade", "racionalidade" ou "saúde" que a loucura é concebida nos quadros da "anormalidade", "irracionalidade" ou "doença".

A palavra latina norma, que está na origem do termo normal, significa "esquadro". A palavra normalis quer dizer "aquilo que não se inclina nem para a direita nem para a esquerda", ou seja, que é "perpendicular", que "se mantém num justo meio termo". Portanto, "uma norma, uma regra, é aquilo que serve para retificar, pôr de pé, endireitar". Nesse sentido, normalizar é impor uma exigência a uma existência que possui um caráter diversificado, irregular. Essa diversidade vai se apresentar em relação à exigência como um elemento de resistência e indeterminação.

Em suma: se o normal se define mediante a execução de um projeto normativo, este, ao mesmo tempo que engendra o anormal (o anormal é condicionado pelo normal), é acionado por ele (o anormal é condição do normal). Em outras palavras, o anormal é uma virtualidade inscrita no próprio processo de constituição do normal e não um fato ou uma entidade autônoma que definiríamos pela identificação de um conjunto de propriedades delimitadas e imutáveis. O anormal é uma relação: ele só existe na e pela relação com o normal. Normal e anormal são, portanto, termos inseparáveis. E é por isso que é tão difícil definir a loucura em si mesma.

(...) o sentido, a função e o valor de uma norma nascem apenas do fato de existir algo, estranho a ela, que não corresponde à exigência a que ela obedece. Isto quer dizer que uma norma só vem a ser norma, exercendo a sua função normativa ou de regulação, mediante a antecipação da possibilidade de sua infração.

O paciente pode afirmar que é o novo Messias, que viu discos voadores ou que está sendo perseguido pelos marcianos. Essas afirmações seriam consideradas sintomas de doença mental apenas se o observador não acreditar no paciente ou na viabilidade do que ele se diz ser ou diz ter -lhe ocorrido. Isso torna evidente que o julgamento "X é um sintoma mental" pressupõe implicitamente que as idéias, conceitos ou crenças do paciente são comparadas com as do observador e da sociedade em que ambos vivem. Portanto, conclui o antipsiquiatra Thomas Szasz (Ideologia e Doença Mental): "a noção de sintoma mental está, desse modo, intrinsecamente ligada ao contexto social e particularmente ético no qual é elaborada". Ou melhor, a sintomatologia, que é o ponto de partida do psiquiatra para a conceituação de qualquer forma de "doença mental", enraíza-se na vida social.

se é a sociedade que efetivamente define as normas de pensamento e de comportamento, o que é normal na sociedade A poderá ser considerado patológico na sociedade B e vice-versa.

Em outras palavras, qualquer que seja o conteúdo cultural de expressão da loucura (todas elas equivalentes tanto do ponto de vista ético como científico), o louco seria, segundo essa abordagem, essencialmente um caso de desvio ou de inadaptação. 

Tal perspectiva mantém uma visão negativa da loucura: ela é apenas afastamento da norma.

Mais do que isso, dizer que há modelos sociais de loucura significa que o indivíduo não enlouquece segundo seus próprios desígnios, mas segundo um quadro previsto pela cultura da qual é membro. Conforme o fundador da Etnopsiquiatria, o etnopsiquiatra Georges Devereux, cada sociedade possui idéias definidas acerca de como deve ser o modo de agir, pensar e sentir dos loucos. Há limites para a expressão da loucura. E isto significa que a loucura, é uma criação cultural.

Mas de qualquer forma, a crise é o modo cultural encontrado pelos indivíduos para responder a uma tensão violenta, interior ou exterior.

Considerados à luz da Psiquiatria, os devaneios, transes e êxtases vivenciados nas culturas primitivas e nas civilizações arcaicas seriam, em essência, estados patológicos. Porém, seria legítimo perceber aqueles fenômenos segundo essa ótica?

Com efeito, nem os deuses nem a energia cerebral poderiam existir independentemente dos respectivos contextos  sociais  em  que  foram  definidos e interiorizados como realidades pelos indivíduos. Assim é que um indígena pode vir a ser possesso e um paulistano de classe média, doente mental. A possessão e a doença mental são fenômenos inteiramente distintos que se constituíram em culturas diferentes.

Em suma, ao levarmos em conta a maneira pela qual a loucura é vivida, sentida e pensada, em contextos sociais diferentes do nosso, somos obrigados a admitir que o vínculo entre loucura e patologia não é universal.


Referência:
FRAYZE-PEREIRA, João. O que é Loucura. São Paulo: Brasiliense, 2002.
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