Um dos temas que da filosofia de Friedrich Nietzsche é o "tornar-se o que se é", que aparece de maneira mais destacada em seu livro autobiográfico "Ecce Homo", cujo subtítulo é "como alguém se torna o que se é", onde comenta sobre seus modos de vida e faz uma breve revisão de algumas de suas obras.
Tornar-se a si mesmo consiste em afirmar a si mesmo, no sentido oposto de se conhecer. Nietzsche destaca o "Torna-te quem tu és", do poeta grego Píndaro, como uma oposição ao "Conhece-te a ti mesmo", antiga inscrição no templo de Apolo, em Delfos, um dos lemas de Sócrates, de acordo com Platão. O "conhecer" se aproxima mais da razão e do pensamento, enquanto o "tornar" se relaciona com a experiência e a ação.
O "conhecer a si mesmo" implica um caminho perante a si mesmo, uma espécie de ideal de si, que pressupõe uma forma de "conversão", que pressupõe moldar-se a um "si mesmo", como se houvesse um "modelo de eu" a ser alcançado mediante práticas e renúncias. Contrário a esta tendência, Nietzsche propõe o apropriar-se do que se é, ao invés de buscar um ideal de "eu".
"(...) o conhece-te a ti mesmo seria a fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar, mediocrizar-se."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')
O ideal do conhecimento de si pode dificultar o contato com nossas vivências, impulsos e forças, nos conduzindo a um caminho específico e delimitado, ao invés de apropriar de nossas experiências vividas, sejam estas boas ou ruins. O conhecimento nos direciona uma forma de ser idealizada, ao invés de nos colocar ativamente diante da vida.
Segundo Nietzsche, a busca de conhecer a si mesmo, de se "entender melhor" pode nos conduzir inclusive a uma organização de nós mesmos e de nossos impulsos, que passa então a controlar e a ordenar nossas atividades, ao invés possibilitar o contato com a experiência de si. Por isso, ele propõe deixar de lado os ideais e os conhecimentos sobre a vida, para nos lançarmos às experiências.
"Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')
Trata-se, portanto, de se aproximar da experiência trágica de vida, que não é algo alegre ou triste, mas alegre e triste, bela e feia, agradável e desagradável, harmoniosa e desarmônica. Uma disposição que afirma a vida tal como esta acontece, que valoriza os impulsos de maneira ativa, criando e agindo a partir das próprias experiências.
Essa postura nos instiga a viver perigosamente. Quando derrubamos os ideais passamos a experimentar novos valores, encarando esta destruição como uma oportunidade para uma disposição ativa diante da própria vida. Viver com um olhar inocente e sem preconceitos sobre si próprio, inclusive afastando-se de si, possibilitando abertura para uma multiplicidade de perspectivas.
"o horizonte nos parece enfim ter voltado a ser livre, mesmo que não esteja límpido, nossos navios podem de novo correr os mares, correr ao encontro de todos os perigos, todos os empreendimentos arriscados do homem de conhecimento são de novo permitidos, o mar, o nosso mar, nos oferece de novo o seu espaço aberto, talvez nunca tenha havido semelhante 'mar aberto'."
(Friedrich Nietzsche, em 'A gaia ciência')
A busca de ideais e modelos de vida não possibilitam o contato consigo, mas apenas um ajustamento a um modelo específico de ser, a um modo de vida delimitado. Neste sentido, o "tornar-se a si mesmo" se diferencia do ajustar-se, correspondendo a uma espécie de experienciação de si, por meio do contato com suas próprias experiências, possibilitando assim emergir suas potencialidades.
Afirmar a vida não é o mesmo que aceitar tudo o que acontece passivamente, mas corresponde a não se submeter às circunstâncias, encontrando meios criativos para lidar com as situações desagradáveis. Neste sentido, não basta dizer sim ao mundo e à vida, mas é preciso dizer sim a si mesmo, e fazer algo daquilo que o impede de tornar-se o que se é.
Criar algo novo demanda destruir o antigo, para transformá-lo. É necessário, portanto, dizer "não" a tudo aquilo que impede nossa capacidade de dizer "sim" à vida. Porém, é preciso um tempo para que este "não" possa se evoluir para um "sim" criador, onde preparamos a terra e adubamos nossas próprias sementes, fermentando possibilidades de afirmar a vida e nos abrir para novas perspectivas.
"Nós negamos e temos de negar, pois algo em nós está querendo viver e se afirmar, algo que talvez ainda não conheçamos, ainda não vejamos!"
(Friedrich Nietzsche, em 'A gaia ciência')
A coragem é necessária para assumir o risco de afirmar a nós mesmos, como algo em processo, em permanente criação e destruição, onde não há estabilidade. Não se trata de um caminho fácil, é como andar em corda bamba sobre um abismo, assumir-se enquanto ser inacabado, antagônico e em transformação, que atravessa paradoxos e segue a vida como um andarilho. Para isso, vale mais o desconhecimento do que o conhecimento, um amor à vida que afirma sua constante transformação.
Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.