Cuidado de si é uma expressão usada por Michel Foucault a partir dos anos 1980, em seus estudos sobre a relação consigo mesmo, entre o "sujeito" e a "verdade", entre o sujeito e os outros, evidenciando o modo como as pessoas se relacionam consigo mesmas e com as outras. Trata-se de uma prática ética, que analisa os discursos e modos da constituição de si.
Segundo Foucault, as práticas de si foram se convertendo numa cultura do cuidado de si, se transformando com o passar do tempo. Fazer uma história destas práticas é também fazer uma história da subjetividade, do modo como a pessoa lida consigo mesma e se relaciona com as outras pessoas, passando pelos modos de conduta, a direção espiritual e as formas de vida.
"(...) o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é, em todo caso, um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber."
(Foucault, em 'História da Sexualidade 3: O cuidado de si')
O imperativo "cuida-te a ti mesmo" é uma tradição antiga, provavelmente iniciada pelos aristocratas, que tinham um certo privilégio político, econômico e social, que possuíam propriedades e escravos que trabalhavam para suas necessidades, assim tinham tempo disponível para ocupar-se de si mesmos.
Entre as práticas do cuidado de si, eram frequentes na Grécia Arcaica, entre os séculos VIII a.C. à VI a.C. - os ritos de purificação, exercícios de resistência, técnicas de concentração da alma e a prática de retiro. Estas atividades foram posteriormente integradas a movimentos religiosos, espirituais e filosóficos, em especial no pitagorismo.
Platão, no século IV a.C., apresenta a figura de seu mestre, Sócrates, como uma referência do cuidado de si, onde relaciona o cuidado de si com o conhecimento de si, que envolvia uma postura perante a si mesmo e aos outros, diante da vida, relacionando o conhecimento enquanto uma das esferas do cuidado de si. Segundo ele, era preciso exercitar o governo de si, para ser possível governar os outros.
"A expressão 'cuidado de si', que é uma retomada do 'epiméleia heautoú' que se encontra, em particular, no Primeiro Alcebíades, de Platão, indica, na verdade, o conjunto das experiências e das técnicas que o sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si mesmo."
(Judith Revel, em 'Michel Foucault: conceitos essenciais')
Durante o período Helenístico e o início do Império Romano, entre os séculos III a.C. a II d.C., o entendimento do cuidado de si passa por uma grande transformação, onde vai deixando de se dirigir ao governo da cidade e dos outros, voltando-se mais diretamente para o governo de si mesmo, que não se faz apenas por meio do conhecimento, mas passa a envolver uma série práticas e exercícios diários.
O cuidado se torna um conjunto de técnicas de si, uma espécie de arte da existência, onde a filosofia passa a ser utilizada como uma espécie de "operação médica", no sentido de utilizar o saber para "se curar". A pessoa virtuosa era entendida como aquela que se desprendia dos vícios, estabelecendo uma relação menos rígida com os outros, acompanhada de conselheiros.
"Ocupar-se consigo não é pois, uma simples preparação momentânea para a vida; é uma forma de vida."
(Michel Foucault, em 'A hermenêutica do sujeito)
Durante o cristianismo, do século III d.C. até aproximadamente o século XV, as práticas de cuidado de si passam a ser associadas ao poder pastoral, a partir de um modelo ascético-monástico, onde o conhecimento de si começa a ser entendido como o conhecimento da verdade a partir dos textos da revelação divina, e uma forma de adequação da vida à esses textos.
Neste momento, a purificação de si mesmo passa a ter maior importância, com o intuito de eliminar as ilusões interiores, as tentações da alma e as seduções. Gradativamente o conhecimento de si vai se distanciando do aproximar-se de si mesmo, se tornando uma espécie de renúncia de si mesmo, em favor do desenvolvimento espiritual e do cuidado dos outros.
Na modernidade, do século XVI em diante, o modelo cartesiano começa a se destacar, atribuindo maior importância ao conhecimento racional e científico do que ao cuidado de si. De acordo com René Descartes (1596-1650), o sujeito era a porta de acesso para o conhecimento sobre si e sobre o mundo, onde o conhecimento passa a ser privilegiado ao invés das atividades.
"Creio que a idade moderna da história da verdade começa no momento em que o que permite aceder ao verdadeiro é o próprio conhecimento e somente ele. Isto é, no momento em que o filósofo, sem que mais nada lhe seja solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, é capaz, em si mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter acesso."
(Michel Foucault, em 'A hermenêutica do sujeito')
Neste período ocorre uma separação entre a filosofia e as práticas de si. A filosofia passa a determinar as possibilidades de conhecimento, e as práticas éticas ou espirituais se direcionam para um conjunto de experiências que os sujeitos devem atravessar para alcançarem a verdade por meio do conhecimento científico, uma diferenciação bem explícita entre o conhecimento e as práticas de si.
Daí em diante, para se alcançar a verdade na filosofia passa a ser necessário um método rigoroso e condições internas específicas, tais como não estar louco, ser sistemático e metódico, se esforçar nos estudos, entre outras. Essa verdade metódica e científica oferece como recompensa o "progresso", enquanto a verdade da espiritualidade exige uma conversão, oferecendo efeitos sobre o corpo do sujeito, como a beatitude, a paz e a tranquilidade da alma.
"Temos pois, com o tema do cuidado de si, uma formulação filosófica precoce, por assim dizer, que aparece claramente desde o século V a.C. e que até os séculos IV-V d.C. percorre toda a filosofia grega, helenística e romana, assim como a espirituralidade cristã. Enfim, com a noção de 'epiméleia heautoú', temos todo um 'corpus' definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade."
(Michel Foucault, em 'A hermenêutica do sujeito')
Apesar das diferenças e rupturas entre a filosofia e as práticas de si não terem acontecido de maneira completa, há uma retomada na importância da espiritualidade e do cuidado de si no século XIX. Neste mesmo período aparecem vertentes de filosofia e das ciências que exigem do sujeito uma espécie de conversão para alcançar a verdade, entre elas modos de vida e pertencimento a um determinado grupo.
Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: WWF, 2010.
REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.