Arte trágica e afirmação em Nietzsche

Guernica, Pablo Picasso, 1937

Para Nietzsche, a arte - enquanto criação - tem um valor muito superior ao conhecimento - enquanto razão -, pois a arte se coloca como uma afirmação da vida, ao invés de buscar uma verdade "essencial" e "imutável" que criou um mundo ilusório para se proteger da vida.

A arte, neste sentido, age diretamente sobre a vida, transformando-a em algo novo e inventivo, retomando seu caráter estético e transformador, afirmando a vida em seu caos e em sua plenitude, colocando-se em favor da vida, juntamente com tudo aquilo que a promove: o corpo, os instintos e as emoções.

Friedrich Nietzsche (1844-1900) analisou o modo como a razão e a consciência podem se voltar contra a própria vida, sufocando-a em categorias morais e metafísicas rígidas, negando sua potencialidade e seu valor por meio da crença num mundo superior de ideias ou da razão, desvalorizando o mundo experimentado dos sentidos e das vivências.

A arte trágica expressa uma integração entre o instinto apolíneo e o dionisíaco, possibilitando uma união entre a essência e a aparência, articulando impulsos contraditórios ao invés de tentar suprimir um deles. Essa união não se limita em alcançar uma "verdade", uma "essência" ou "ideal de mundo", mas aceita o conflito entre os opostos, combinando estes para melhor afirmar a vida.

"Nietzsche argumenta que a tragédia combina dois tipos de estética que são usualmente mantidos em separado nas outras artes: o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o deus da beleza; Nietzsche o associava ao sonho, harmonia, forma e artes plásticas (como a escultura). Dionísio é o deus do vinho; Nietzsche o associava à intoxicação, desarmonia, ausência de forma, sublimidade e música. Nietzsche considera a combinação de ambas as estéticas na tragédia como a forma ideal de arte, uma forma que mais bem nos permite lidar com a vida e afirmá-la."
(Ashley Woodward, em 'Nietzscheanismo')

A filosofia platônica buscava encontrar a verdade do mundo e do ser humano através da negação da aparência, entendendo a verdade enquanto uma qualidade que não está disponível no mundo sensível e aparente, mas num outro mundo ideal da razão. Negava-se, portanto, o mundo sensível, tido como "falso", para admitir um mundo racional, entendido como "verdadeiro".

Segundo Nietzsche, a razão científica reprimiu a força criadora da vida, procedimento que se iniciou com a razão socrática e a metafísica platônica em sua vontade de verdade. Portanto, é preciso revalorizar a arte, para que se possa revalorizar a vida, reafirmando a potência do corpo, dos sentidos, dos impulsos e da intuição, retomando o saber em favor da vida.

A finalidade da arte trágica é enaltecer a vida a partir da própria experiência de vida, o que não consiste em mascarar as dores e o que há de desagradável, mas numa atuação perante o sofrimento e os paradoxos, reconhecendo as contradições próprias da vida. A arte trágica é aquela que se permite experimentar a dor e a alegria, criando algo a partir dessas experiências.

É assim que a arte trágica promove uma potencialização da alegria de viver, um sentimento de que a experiência não será delimitada ou recortada, mas se colocando enquanto uma abertura às possibilidades de vida, valorizando a multiplicidade, unindo as tendências apolíneas e dionisíacas, ao invés de defender uma vida meramente racional e fechada em si.

"A arte é essencialmente afirmação, divinização da existência. Nietzsche valoriza os impulsos estéticos como condição de criação de novas condições de existência."
(Rosa Dias, em 'Nietzsche, vida como obra de arte')

A valorização da arte trágica, ao invés da busca pela "verdade", possibilita um melhor acesso a questões mais fundamentais da existência, que foram deixadas de lado pela metafísica clássica, que instaurou o privilégio da razão sobre as experiências sensíveis, girando em torno da busca das "essências" e "verdades" imutáveis, ao invés da multiplicidade e transitoriedade da experiência sensível.

A arte e a filosofia trágica são exemplos de forças possíveis para um novo tipo de conhecimento e uma nova forma de vida, que não partem da razão ou das "essências imutáveis", mas que se guia por valores estéticos e potências - reconhecendo e afirmando o corpo e seus impulsos, bem como as aparências.

"A afirmação da vida, da realidade, que caracteriza a arte trágica é afirmação da aparência porque a própria vida é aparência."
(Roberto Machado, em 'Nietzsche e a verdade')

Nietzsche propõe utilizar a arte trágica como um meio de afirmar a validade do mundo sensível, sem buscar elementos externos a ela. Por isso, ele considera uma superioridade da arte sobre a ciência, que afirma integralmente a vida. A força da arte é a força da afirmação da vida, enquanto a da ciência acaba sendo a negação desta.

Deste modo, o filósofo propõe uma inversão da correlação de forças, contraponto a negação da vida pela racionalidade que busca a verdade negando o sensível, o corpo e os impulsos, evidenciando a arte trágica enquanto reconhecimento do corpo, de seus impulsos e suas contradições, enquanto uma forma de afirmar a vida tal como esta acontece.

"Foi Nietzsche, na segunda metade do século XIX, que, opondo-se às tendências predominantes nas religiões, na filosofia, na ciência, e na moral, afirmou o valor incondicional do corpo, dos sentidos e da vivência. Tal como eles se manifestam em sua espontaneidade."
(Afonso Fonseca, em 'Para uma história das psicologias e psicoterapias fenomenológico-existenciais’)

Nietzsche contrapõe o modo de ser científico e racional, ao modo intuitivo e artístico. O primeiro refugia-se na cápsula, considerando os conceitos como a verdade das coisas, enaltecendo a razão ao invés da experiência, enquanto o segundo conhece o engano das determinações e dos conceitos, reconhecendo o valor da vida e se movimentando de maneira livre e criativa.

Para ele, o tipo intuitivo e artista é superior ao lógico e o cientista. Este não é guiado por convenções, classificações e conceitos, mas direcionado pelas intuições, experimenta a vida por intensidades, se colocando em favor de novas formas de vida, experimentando a vida como um jogo de criança.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2011.
FONSECA, Afonso. História das Psicologias e Psicoterapias Fenomenológico Existenciais. Pedang: Maceió, 2006.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
WOODWARD, Ashley. Nietzscheanismo. Petrópolis: Vozes, 2017.

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