O livro 'Soma, uma terapia anarquista - Vol. 2' apresenta as bases teóricas e a prática da Somaterapia, uma terapia de grupo criada e desenvolvida por Roberto Freire. Apontando a relação entre a Soma e a Capoeira, enquanto exercício para a liberação bioenergética, uma forma de levar as pessoas ao enfrentamento interpessoal, possibilitando sua libertação enquanto ser social.
Alguns trechos do livro:
Mas, sabe, é muito difícil escrever sobre o soma. Só os grandes criadores conseguem isso. Porque eles estão libertos do que chamo de ditadura da mente. Eles deixam seu soma produzir livremente, espantam-se mentalmente com o que estão produzindo, assim como se esse seu produto não fosse uma obra sua, como se fossem coisas que se produziram através deles. Os poetas, os músicos, e os dançarinos são os criadores somáticos por excelência.
Na Soma, procuro conhecer o funcionamento total da pessoa e suas características que são comuns ao seu grupo social, mas sobretudo procuro desvendar aquilo que ele tem de original e único. Essa característica (originalidade única) é, sempre, a mais bloqueada nas pessoas que procuram terapia. Meu trabalho, pois, é fazer, através de exercícios somáticos, com que elas dêem “bandeira” de sua originalidade e de como essa originalidade está bloqueada.
No fundo, o objetivo final da Soma é a localização e exposição do potencial criativo espontâneo da pessoa, para que ela própria, livre e autonomamente, encontre os meios e os caminhos a seguir para a sua libertação, ao nível da sua originalidade única, sem nenhuma forma de paternalismo pessoal (do terapeuta) ou social (do grupo). O que estamos ajudando a libertar é o ser criador da pessoa (o Poeta), a única coisa realmente bloqueada (em mil formas e maneiras) nas pessoas chamadas neuróticas.
E nisso se baseia sua rejeição aos regimes totalitários de direita e de esquerda e sua crítica ao capitalismo, no que este tem de desumanização, bloqueamento e frustração total.
processo criador humano que considero, no caso da Soma, impossível de separar o que é ciência e o que é arte, bem como também que a finalidade última e fundamental da Soma é libertar os potenciais criadores das pessoas e, mais simbolicamente, o Poeta que reprimiram nele.
Para mim, do ponto de vista psicológico, o anarquista não é uma pessoa que apenas desafia autoridades, mas simplesmente alguém que não a reconhece e que não a exerce, através de qualquer forma de poder ameaçador, repressor, condicionador, chantagista. O homem libertário é o que estabelece hierarquias afetivas em relação às outras pessoas, em função apenas do que elas representam como valores afetivos, morais (fraternidade, sobretudo), intelectuais (originalidade criativa) e de cumplicidade (cooperativismo, em todos os tipos de convivência, desde o amor homem-mulher, pais-filhos, até granjas, fábricas, sindicatos, etc.).
Graças à vivência terapêutica em grupo, no processo pedagógico libertário, você acabou por substituir a neurose com que se defendia por uma saúde bioenergética e política, passando a enfrentar ativa e eficientemente todas as formas de autoritarismo social e familiar, mas, sobretudo encarou e dominou o seu, nas relações afetivas e produtivas.
E você descobria, pasmo e encantado, esta coisa óbvia: o homem livre é mais amável, e só ama em liberdade quem também for socialmente livre. E uma vez livre da família autoritária, não conseguia mais acasalar-se, viver junto e criar filhos dentro dos padrões da família burguesa tradicional.
A Psicologia para mim, hoje, não passa de um ramo da Política. Um ramo ou aliado poderoso que, aliás, vem servindo à manutenção dos sistemas autoritários, fingindo ser uma ciência apolítica e independente.
Pode-se facilmente constatar, estudando a aplicação da Psicologia no Ocidente, que todos os seus campos de ação e metodologia estão a serviço do poder político burguês, e são financiados pelo capitalismo. Tanto terapias behavioristas, condicionando o comportamento individual ou social (metodologia do poder, escolar e de massa, por meio da pedagogia) e propagandas autoritárias (do gênero domesticação animal: prêmio, punição e reforço), quanto terapias clínicas que funcionam adaptando (deformando, claro) personalidades originais variadas e diversas aos parâmetros de normalidade estabelecidos pelo sistema político autoritário e discriminador.
Essa forma radicalmente nova de amar é a que propõe o socialismo libertário. Isso, nem o capitalismo burguês e nem o socialismo autoritário conhecem. Daí a vocação antiautoritária da Soma e o seu desejo de formar novos terapeutas que já conheçam, que já vivam e reproduzam essa forma de amar, de criar e de lutar.
Era fascinante, para nós, constatar que o que era bom para desbloquear e desenvolver a criatividade era bom também para livrar as pessoas da neurose. Ficava, assim, claro para mim que, no fundo, a neurose constituía-se fundamentalmente em bloqueios à criatividade vital, inclusive a artística.
A palavra Soma viria substituir o prefixo psi que eu pretendia retirar da designação de meu trabalho.
A Soma é uma terapia original e, por isso mesmo, sua metodologia difere bastante das demais existentes, tradicionais ou modernas. Essa diferença deriva principalmente de dois de seus aspectos principais: primeiro, o objetivo político, revolucionário e libertário explícito; segundo, que o terapeuta apenas fornece dados científicos e políticos, bem como limita-se a liderar a aplicação técnica do método. Assim, é o grupo, funcionando autogestivamente, que produz a terapia social e pessoal necessária à vida de cada pessoa, inclusive à do terapeuta.
O desbloqueio e o desenvolvimento da criatividade das pessoas é um dos objetivos básicos e primeiros da Soma.
Partimos do princípio reichiano e antipsiquiátrico de que a neurose e a psicose, qualquer alteração da vida emocional e psicológica das pessoas, são produzidas de fora para dentro, ou seja, da família e da sociedade sobre a pessoa, especialmente de como esta reage e responde à intervenção heterorreguladora sobre sua capacidade autogestiva natural. Assim, concluímos estar limitando nosso trabalho na Soma a reforçar as defesas orgânicas e políticas das pessoas, para que enfrentem melhor essa intervenção externa indevida sobre sua autonomia biológica e social. A Soma exerceria, portanto, mais um trabalho pedagógico e profilático do que propriamente clínico e terapêutico.
O somaterapeuta sabe, portanto, que mesmo sendo o objetivo principal de seu trabalho o combate ao autoritarismo, isso tem de ser feito combatendo ou impedindo o seu efeito sobre a psicologia e a ideologia da pessoa.
Aceitar e valorizar a diversidade das pessoas e dos grupos que surgem na Soma corresponde ao nosso objetivo na prática da vida anarquista.
Na dinâmica dos grupos de Soma respeita-se, fundamentalmente, o direito de todos os seus membros, tanto de associação como de secessão. E qualquer decisão do grupo a esse respeito será feita sempre por consenso. Sem neurose e sem autoritarismo, não existem impasses que não possam ser superados por esclarecimento, conscientização e consenso. Nos grupos de Soma, vive-se, produz-se, cria-se e ama-se de modo anarquista. Por isso, liberta apenas as pessoas que acreditam em seus potenciais humanos e não necessitam de nenhuma forma de autoritarismo ou dependência para exercê-los.
Fonte:
FREIRE, Roberto. SOMA Uma Terapia Anarquista. Volume 2: A arma é o corpo - Prática da Soma e Capoeira. 2ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.