Elogio da Loucura é um ensaio escrito por Erasmo de Rotterdam (1466-1536), publicado em 1511, considerado uma das mais importantes obras do ocidente. Com referências clássicas e mitológicas, o autor apresenta a loucura falando sobre si mesma, destacando sua importância para a humanidade.
A loucura narra a si mesma e mostra o quanto está presente no mundo dos homens, se declarando responsável por tornar a vida mais alegre e suportável. Erasmo critica o ensino da escolástica, os falsos sábios que se distanciaram da vida simples e a hipocrisia das instituições humanas. Suas críticas influenciaram transformações entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna.
Fragmentos:
Seja a loucura quanto quiserem; terão de reconhecer a sua coerência. Pois o que há de mais coerente do que a Loucura que alardeia sua própria glória e canta seus próprios louvores? Quem melhor do que eu poderia descrever-me? A menos que alguém me conheça mais do que eu mesma.
Todos me cortejam e reconhecem de bom grado os meus favores, porém, em muitos séculos, não apareceu ninguém que desse voz à gratidão com um discurso de louvor à Loucura.
Não gostaria, porém, que julgásseis que o compus para vos mostrar meu valor, como costumam fazer os oradores. (...) Eu, porém, sempre gostei de dizer tudo o que me passa pela cabeça.
Ninguém, portanto, espere de mim que, segundo o costume desses oradores sem talento, defina a minha essência e menos ainda que analise, fazendo distinções. São na verdade coisas de mau agouro, tanto estabelecer limites àquela cujo poder é ilimitado, quanto introduzir divisões nela.
Longe de mim qualquer truque; não simulo no rosto uma coisa, tendo outra no coração. Sob todos os aspectos, sou sempre semelhante a mim mesma.
(...) tudo o que há de bom na vida é também um presente meu.
Dizei-me, por Júpiter, que hora da vida não seria triste, difícil, feia, ínspida, tediosa, sem o prazer, ou seja, sem um pouquinho de loucura?
É por mérito meu que os jovens são tão carentes de juízo; por isso estão sempre de bom humor. Eu mentiria, porém, se não admitisse que, tão logo crescem um pouco e começam a adquirir certa maturidade com a experiência e a educação, a beleza logo murcha, diminui a alegria, esmorece a graça, decresce o vigor. Quanto mais se distanciam de mim, menos vivem.
Porventura ser criança não quer dizer delirar e não ter juízo? E não é exatamente isso, não ter juízo, o que mais agrada naquela idade?
(...) só a Loucura é capaz de prolongar a fugitiva juventude e manter distante a velhice importuna.
Em primeiro lugar, observai com quanta previdência a natureza, mãe e artífice do gênero humano, teve o cuidado de espalhar por toda parte um pouquinho de loucura.
(...) quanto mais participam da loucura, mais alegram a vida dos mortais.
(...) a maior parte dos homens tem um pouco de loucura, aliás, não há ninguém que, de um modo ou de outro, não tenha suas esquisitices.
Em suma, sem mim nenhuma sociedade, nenhum relacionamento feliz poderia durar. O povo cansar-se-ia do príncipe; o servo, do amo; a serva, da patroa; o professor, do aluno; o amigo, do amigo; a mulher, do marido; o locador, do locatário; o companheiro, do companheiro; o hóspede, do anfitrião; se de vez em quando não se enganassem uns aos outros, ora adulando-se, ora sabiamente fingindo não ver, ora bajulando-se com o mel da Loucura. Sei que estas vos parecem enormidades, mas ainda ouvireis piores.
Agora devo acrescentar que nada de grande se pode empreender sem o meu impulso, pois é a mim que se deve a invenção de todas as nobres artes.
Essa loucura gera as cidades; nela se baseiam os governos, as magistraturas, a religião, as assembleias, os tribunais. A vida humana nada mais é do que um brinquedo da Loucura.
Toda a vida humana nada mais é do que um espetáculo em que, um com uma máscara, outro com outra, cada qual recita seu papel para, a um sinal do chefe do coro, sair de cena. Este, porém, muitas vezes o faz recitar papéis diversos, e assim, quem antes se apresentava como rei vestido de púrpura, aparece depois nos farrapos de um pobre escravo. São tudo coisas imaginárias; mas é assim que essa comédia se desenrola.
Para um mortal, é sabedoria não querer ser mais sábio do que lhe cabe pela sorte, concordar com os costumes da multidão e participar de bom grado das fraquezas humanas. Mas, dizem, é justamente isso a loucura. Não o contestarei, desde que em troca reconheçam que assim se recita a comédia da vida.
Eu, por meu lado, valendo-me ora da ignorância, ora da irreflexão, às vezes fazendo esquecerem os males, às vezes suscitando esperanças de coisas favoráveis, excitando os prazeres com algumas gotas de mel, em tão grandes males sou tão consoladora que ninguém quer deixar a vida, nem mesmo quando o fio das Parcas já acabou e a própria vida vem a faltar. Pelo contrário, quanto menos motivos têm para permanecerem vivos, mais amam a vida, tão distantes estão de ser tocados pelo tédio.
Que a sua conduta costume ser considerada vergonhosa é algo que pouco importa aos meus loucos: nem sequer percebem ou, se dela sentem certo odor, não se preocupam nem um pouco. Levar uma pedrada na cabeça, isso sim faz mal. A vergonha, a infâmia, a desonra, as ofensas são nocivas à medida que fazem sofrer. Para quem não se importa, não são sequer um mal. Que te importa se todos te vaiem, se tu te aplaudes? Que isso te seja possível, é algo que deves só à Loucura.
Fonte:
ERASMO DE ROTTERDAM. Elogio da Loucura. Trad.: Paulo Sérgio Brandão. 3 ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.