Cena da tragédia Andrômaca de Eurípides. Afresco romano, Casa di Marco Lucrezio Frontone (V 4, a) em Pompéia. |
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) propôs uma filosofia trágica, criticando a perspectiva racional apolínea, que tendia para a busca da unidade, das essências, da iluminação, da verdade e da eternidade, contrastando com a perspectiva dionisíaca, que admite a sombra, o irracional, o obscuro e a existência.
A filosofia trágica não pretende excluir a razão apolínea, mas experimentar de maneira simultânea com a perspectiva dionisíaca, de modo que a união das duas possibilita um melhor caminho para a afirmação da vida em sua complexidade, não excluindo ou priorizando a razão, a emoção, a verdade ou a mentira, a sanidade ou a insanidade, mas convivendo com ambas simultaneamente.
Para Nietzsche, a razão apolínea, que busca as essências e a iluminação, considerou a experiência dionisíaca como uma realidade falsa e problemática, rompendo assim com a experiência dionisíaca e irregular do mundo aparente, valorizando as belas formas e a perfeição, deixando de lado a experiência sensível e transitória, desconsiderando o instinto estético da natureza.
Constatando isso, o filósofo alemão propõe uma experiência da simultaneidade entre o instinto apolíneo o instinto dionisíaco, possibilitando uma reconciliação entre as divindades gregas, Apolo e Dionísio, reconhecendo que unidas possibilitam uma maior expansão das potências da vida e da criação, na arte e na filosofia, possibilitando a experiência de embriaguez sem a perda da lucidez.
Sua filosofia trágica não é uma mera alternância entre a lucidez e a embriaguez, mas da experiência de ambas simultaneamente. Para Nietzsche, a finalidade da tragédia é produzir alegria, que não se alcança por meio de um mascaramento da dor, nem pela resignação, mas por seu reconhecimento e transformação. A valorização do trágico ao invés da busca da "verdade", possibilita um acesso a questões fundamentais da existência.
A filosofia nietzschiana é, portanto, trágica e dionisíaca, se coloca numa luta contra a prioridade da filosofia racional e apolínea. Nietzsche detecta um combate de forças entre o trágico e o racional, entre uma civilização socrática e lógica e outra trágica e experimental. Segundo ele, a filosofia trágica coloca o conhecimento a serviço da vida, ao invés de estar contra ela, como acontece com a tendência racional.
"O filósofo do conhecimento trágico. Ele domina o instinto desenfreado de saber, mas não por uma nova metafísica. Não estabelece nenhuma nova crença. Sente tragicamente que o terreno da metafísica lhe foi retirado e, no entanto, não pode se satisfazer com o turbilhão confuso das ciências. Trabalha pela edificação de uma nova vida: restitui à arte seus direitos."
(Friedrich Nietzsche, em ‘Fragmentos póstumos’)
Nietzsche constata uma desvalorização da vida por meio da filosofia metafísica e moral, que cria e estabelece valores superiores em noções como "verdade", "bem" e "beleza", priorizando a razão e descartando a importância dos sentimentos e do transitório. Para o filósofo, os sentidos não nos enganam, ao contrário, é a razão que frequentemente transforma e falsifica a experiência dos sentidos.
O corpo, enquanto um conjunto de instintos em relação é muito mais interessante que a razão, por isso ele toma o corpo como ponto de partida, em toda a sua complexidade e suas contradições. Assim ele propõe contrapor o trágico ao lógico, usando critérios para uma filosofia em favor da vida. Segundo ele, o conhecimento racional é apenas uma forma de conhecimento entre tantas outras possíveis, portanto não deve ser colocado numa posição privilegiada.
Deste modo, ele substitui a teoria do conhecimento pela perspectiva dos instintos, afirmando o perspectivismo do conhecimento, negando a universalidade e a objetividade das essências. Apresenta assim uma oposição entre o "homem racional", regrado, lógico e conceitual ao "homem trágico", intuitivo, metafórico, artista e criador, transbordante de alegria, que se liberta da obrigação da verdade.
"Assim, a verdade não é alguma coisa que existiria para ser encontrada e descoberta - mas alguma coisa que deve ser criada e que dá nome a um processo, mais ainda, a uma vontade de ultrapassar que não tem fim: introduzir verdade como processus in infinitum (....) e não como devir consciente de algo [que] seria ‘em si’ firme e determinado."
(Friedrich Nietzsche, em ‘Fragmentos póstumos’)
"Eis o que é, em última instância, a filosofia trágica, dionisíaca: uma perspectiva para além de bem e mal e para além da verdade e erro; uma perspectiva para além da moral."
(Roberto Machado, em 'Nietzsche e a verdade')
Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.
NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.