O livro 'Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em psicologia' apresente críticas e questionamentos sobre a psicologia, seus intuitos escusos e suas tendências ideológicas, entendendo a psicologia enquanto uma ciência do sujeito e da subjetividade, partindo da historicidade como noção básica, a subjetividade social, a consciência e a atividade, destacando os fundamentos Psicologia Sócio-Histórica e de sua atuação.
Os temas e questões contidos no livro são resultados de uma construção coletiva da equipe de Psicologia Sócio-História da Faculdade de Psicologia da PUC de São Paulo. A Psicologia Sócio-Histórica tem suas raízes em pensadores russos, como Vygotsky, Luria, Leontiev, entre outros. Esta obra oferece uma introdução sobre esta tendência de psicologia.
Fragmentos do primeiro capítulo:
A Psicologia tem muitos anos de existência, pois o marco que temos considerado para sua instituição enquanto área específica na ciência é o ano de 1875. As condições para a construção da Psicologia encontram-se, pois, no século XIX. Nesse período a burguesia moderna ascende enquanto classe social. Todas as transformações daí decorrentes são consideradas condições históricas para o surgimento da ciência moderna e posteriormente da Psicologia. A ênfase na razão humana, na liberdade do homem, na possibilidade de transformação do mundo real e a ênfase no próprio homem foram características do período de ascensão da burguesia que permitiram uma ciência racional, que buscou desvendar as leis da natureza e construir um conhecimento pela experiência e pela razão. Um método científico rigoroso permitia ao cientista observar o real e construir um conhecimento racional, sem interferência de suas crenças e valores. Assim, surge a ciência moderna experimental, empírica, quantitativa.
Outras características marcam a ciência no século XIX: positivista, porque se constituiu como sistema baseado no observável; racionalista, pela ênfase na razão como possibilidade de desvendar as leis naturais; mecanicista, porque se pautou na idéia do funcionamento regular do mundo, guiado por leis que poderiam ser conhecidas; associacionista, porque se baseou na concepção de que as idéias se organizam na mente de forma a permitir associações que resultam em conhecimento; atomista, pela certeza de que o todo é sempre o resultado da organização de partes; e determinista, porque pensou o mundo como um conjunto de fenômenos que são sempre causados e que essa relação de causa-efeito pode ser descoberta pela razão humana.
A Psicologia Sócio-Histórica carrega consigo a possibilidade de crítica. Não apenas por uma intencionalidade de quem a produz, mas por seus fundamentos epistemológicos e teóricos.
Fundamenta-se no marxismo e adota o materialismo histórico e dialético como filosofia, teoria e método. Nesse sentido, concebe o homem como ativo, social e histórico; a sociedade, como produção histórica dos homens que, através do trabalho, produzem sua vida material; as ideias, como representações da realidade material; a realidade material, como fundada em contradições que se expressam nas ideias; e a história, no qual, a partir da base material, deve ser compreendida toda produção de ideias, incluindo a ciência e a Psicologia.
O primeiro aspecto é o abandono da visão abstrata do fenômeno psicológico e a crítica a ela.
As ideias "naturalizadoras" do liberalismo serão responsáveis pela concepção de fenômeno psicológico que se tornará dominante na Psicologia.
O fenômeno psicológico, seja qual for sua conceituação, aparece descolado da realidade na qual o indivíduo se insere e, mais ainda, descolado do próprio indivíduo que o abriga. Esta é a noção: algo que se abriga em nosso corpo, do qual não temos muito controle; visto como algo que em determinados momentos de crise nos domina sem que tenhamos qualquer possibilidade de controlá-lo; algo que inclui "segredos" que nem mesmo nós sabemos; algo enclausurado em nós que é ou contém um "verdadeiro eu".
A Psicologia Sócio-Histórica não trabalha com essa concepção. Acredita que o fenômeno psicológico se desenvolve ao longo do tempo. Assim, o fenômeno psicológico: não pertence à Natureza Humana; não é preexistente no homem; reflete a condição social, econômica e cultural em que vivem os homens.
Portanto, para a Sócio-Histórica, falar de fenômeno psicológico é obrigatoriamente falar de sociedade. Falar de subjetividade humana é falar da objetividade em que vivem os homens. A compreensão do "mundo interno" exige a compreensão do "mundo externo", pois são dois aspectos de um mesmo movimento, de um processo no qual o homem atua e constrói/modifica o mundo e este, por sua vez, propicia os elementos para a constituição psicológica do homem.
O fenômeno psicológico deve ser entendido como construção no nível individual do mundo simbólico que é social. O fenômeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constitui na relação com o mundo material e social, mundo este que só existe pela atividade humana. Subjetividade e objetividade se constituem uma à outra sem se confundir. A linguagem é mediação para internalização da objetividade, permitindo a construção de sentidos pessoais que constituem a subjetividade. O mundo psicológico é um mundo em relação dialética com o mundo social. Conhecer o fenômeno psicológico significa conhecer a expressão subjetiva de um mundo objetivo/coletivo; um fenômeno que se constitui em um processo de conversão do social em individual; de construção interna dos elementos e atividades do mundo externo. Conhecê-lo dessa forma significa retirá-lo de um campo abstrato e idealista e dar a ele uma base material vigorosa.
Na Psicologia, ao construir as noções e teorizações sobre o fenômeno psicológico, temos ocultado sua produção social.
O fenômeno psicológico, como qualquer fenômeno, não tem força motriz própria. É na relação com o mundo material e social que se desenvolvem as possibilidades humanas.
Assim, há anos a psicologia tem contribuido para responsabilizar os sujeitos por seus sucessos e fracassos; (...) temos acreditado que pessoas podem ser classificadas e diferenciadas por suas características e dinâmicas psicológicas; temos criado (ou contribuído para reforçar) padrões de conduta que interessa à sociedade manter, como necessários ao "bom desenvolvimento das pessoas". A psicologia tem reforçado formas de vida e de desenvolvimento das elites como padrão de normalidade e de saúde, contribuindo para a construção de programas de recuperação e assistência destinados àqueles que não "conseguem" se desenvolver nessa direção. Tem transformado em anormal o diferente, o "fora do padrão dominante".
A Psicologia não tem sido capaz de, ao falar do fenômeno psicológico, falar de vida, das condições econômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os homens. A Psicologia tem, ao contrário, contribuído significativamente para ocultar essas condições. Fala-se da mãe e do pai sem falar da família como instituição social marcada historicamente pela apropriação dos sujeitos; fala-se da sexualidade sem falar da tradição judaico-cristã de repressão à sexualidade; fala-se da identidade das mulheres sem falar das características machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura; fala-se de habilidades e aptidões de um sujeito sem se falar de suas reais possibilidades de acesso à cultura; fala-se do homem sem falar do trabalho; fala-se do psicológico sem falar do cultural e do social. Na verdade, não se fala de nada. Faz-se ideologia.
O mundo social e o mundo psicológico caminham juntos em seu movimento. Para compreender o mundo psicológico, a Psicologia terá obrigatoriamente de trazer para seu âmbito a realidade social na qual o fenômeno psicológico se constrói; e, por outro lado, ao estudar o mundo psicológico, estará contribuindo para a compreensão do mundo social. Trabalhar para aliviar o sofrimento psicológico das pessoas exigirá do psicólogo um posicionamento ético e político sobre o mundo social e psicológico.
A Psicologia tem sua história "colada" aos interesses dos grupos dominantes. Estivemos sempre produzindo conhecimentos e traduzindo-os em uma Psicologia aplicada, de forma a permitir o aumento do controle sobre os grupos sociais, a ampliação da capacidade produtiva dos trabalhadores, a distribuição de crianças de forma homogênea ou heterogênea nas classes, para garantir aprendizado e disciplina, a seleção do homem certo para o lugar certo, a higienização moral da sociedade, o controle do comportamento, a classificação e a diferenciação. A história da Psicologia, como ciência e profissão, se confunde nos diferentes momentos da organização social com os interesses de determinados grupos sociais e lança mão de seus instrumentos e saberes para responder a esses interesses.
A industrialização no Brasil trará novas exigências à Psicologia que, com a experiência da Psicologia aplicada à educação, pôde colaborar significativamente com o seu conhecimento, possibilitando a diferenciação das pessoas para a formação de grupos mais homogêneos nas escolas e a seleção de trabalhadores m ais adequados para a empresa. Seguíam os o lema taylorista do "homem certo para o lugar certo". No âmbito internacional, as Guerras trouxeram o desenvolvimento dos testes psicológicos, instrumentos que viabilizaram essa prática diferenciadora e categorizadora da Psicologia. E foi com essa tradição e com esse lugar social que a Psicologia se institucionalizou no Brasil e foi reconhecida como profissão em 1962.
A "normalidade" recebe, então, outro sentido. Passa a ser vista como a possibilidade de se ter como característica, no nível individual, o que a hum anidade conquistou e a sociedade valorizou, reforçou, estimulou e possibilitou à maioria.
É preciso compreender que estamos contribuindo para a construção de projetos de vida, direcionados para finalidades que interessem ao sujeito. Escamotear esse direcionamento do trabalho é ocultar a influência que temos. Não assumir a influência é camuflar a finalidade do trabalho, que fica então fora de questão, de debate, e de crítica.
O objeto do trabalho é um projeto de vida que pertence apenas ao cliente. Ao realizar seu trabalho, o profissional deve ter consciência de que estará interferindo em um projeto de vida que não lhe pertence. Daí a necessidade do rigor ético que garanta o respeito e a transparência do profissional. Daí a necessidade de o psicólogo conceber seu trabalho como intencionado e direcionado, para que, com uma postura ética rigorosa, possa, a qualquer momento, esclarecer o direcionamento de seu trabalho, superando a suposta neutralidade, que ocultou sempre, no discurso cientificista, a concepção de “normalidade” e a da saúde que nada mais eram do que valores sociais instituídos e dominantes sendo reforçados.
É interessante notar que nossas construções ideais de saúde e de normalidade em geral abrigam valores morais da cultura dominante da sociedade; por serem dominantes, instalaram-se na ciência e na profissão como referência para o comportamento e as formas de ser dos sujeitos. O problema maior está em que não temos assumido essa adesão. Temos apontado esses valores e referências como naturais do homem; como universais. Desta forma, trabalhamos para manter os valores dominantes e para justificá-los como a única possibilidade de estar no mundo. O diferente passa a ser combatido; visto como crise, como desajuste ou desequilíbrio; passa a ser "tratado", com a finalidade do retorno à condição saudável e natural do homem. A Psicologia torna-se assim uma profissão conservadora que trabalha para impedir o surgimento do novo.
O positivismo contribuiu para construir uma Psicologia que entendeu o fenômeno psicológico como algo desligado das tramas sociais, semelhante a qualquer outro fenômeno natural e, como tal, submetido a leis que não podem ser alteradas pela vontade humana, mas apenas conhecidas.
O positivismo, ao basear-se na naturalização dos fenômenos humanos e sociais e ao buscar, por meio de um método objetivista, afastar os elementos sociais e os valores culturais da produção da ciência, efetivou um real desligamento do pensamento de sua base material. Fez dos fenômenos entidades abstratas, cuja verdade se encontra no esforço do pensamento racional e de seus métodos.
Assim, a Psicologia Sócio-Histórica produzirá conhecimentos com outros pressupostos, abandonando a pretensa neutralidade do positivismo, a enganosa objetividade do cientista, a positividade dos fenômenos e o idealismo, colocando sua produção à materialidade do mundo e criando a possibilidade de uma ciência crítica à ideologia até então produzida e uma profissão posicionada a favor das melhores condições de vida, necessárias à saúde psicológica dos homens de nossa sociedade.
Fonte:
BOCK, Ana M.; GONÇALVES, Maria da G.; FURTADO, Odair. (orgs). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2015.