Afirmação da vida em Nietzsche

Nietzsche foi um filósofo que colocou em questão os valores morais do ocidente, propondo uma filosofia e vida para além de bem e mal, que significa filosofar e viver para além de normas morais limitantes, que impedem novos modos de vida. Sua genealogia da moral colocou em questão os valores morais e sua pretensa validade atemporal e universal, destacando o valor da potência e do corpo ao invés da razão e da moral.

Romper com as normas morais previamente estabelecidas, com os ideais de bem e mal, certo e errado, adequado ou inadequado, verdadeiro ou falso, nos possibilita uma abertura para a criação de novos valores. Porém, este rompimento não nos oferece seguranças, garantias ou estabilidade, pelo contrário, é sempre um risco experimentar novos modos de vida, mas viver é por si só uma experiência arriscada.

Trata-se da possibilidade de experimentar novos caminhos e perspectivas, avaliando a vida a partir de nosso próprio corpo e potências, do que nos faz e o que não nos faz bem, sem a necessidade de recorrer a uma moral, mas partindo de sua própria experiência, colocando-se aberto a novas formas de vida. Assim poderemos experimentar atividades que afirmam a vida, o mundo e a nós mesmos, ao invés de negar por meio de ideais e guias, sejam estes metafísicos ou morais.

"De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, (...) nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa - enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’."
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência', aforismo 343)

O desejo por viver apenas os momentos alegres e agradáveis da vida, a busca pela beleza e perfeição, que deixa de lado as dificuldades e as tristezas é uma mera idealização segundo Nietzsche. Não há prazer sem sofrimento ou felicidade sem momentos de infelicidade, assim como não há verdade sem mentira. Portanto, aceitar a um dos aspectos implica necessariamente "dizer sim" a ambos, ao mesmo tempo que negar um aspecto é o mesmo que negligenciar dois.

A afirmação da vida implica numa afirmação de sua plenitude e de seu caos, em toda a sua potência, paixão, alegria, dor, satisfação, temor, fatalidade e dureza. O sofrimento, os conflitos e as contradições são inevitáveis, mas há maneiras mais interessantes de lidar com eles do que a negação ou a resignação. Nietzsche propõe a seletividade e o afastamento, onde ao invés de nos esgotarmos indo contra aquilo que nos aborrece ou nos entristece, podemos simplesmente nos dedicar a outras atividades novas e criativas.

"(...) temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver - isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo."
(Friedrich Nietzsche, em 'A Gaia Ciência', Prólogo)

Neste sentido, Nietzsche nos propõe a fazer algo novo da vida, ao invés de evitar o velho, nos lançar a novas experiências, num fazer característico de um transmutar, onde os velhos valores são destruídos para que novos sejam possíveis, partindo de uma reavaliação dos valores. Para uma vida afirmativa, a renúncia nunca é o ponto de partida, mas apenas sua consequência. Essa é a sua estratégia para transmutar um hábito: nunca cessar de fazer, mas fazer outra coisa mais intensa, mais potente e mais contagiante.

Assim, não há sentido em gastar tempo e energia de vida em atividades como "parar de fumar", "deixar de comer carne" ou "parar de beber". Ao invés disso, podemos nos dedicar a outras atividades mais interessantes, a colocar em prática o que gostaríamos de realizar, de modo que possamos sentir satisfação desde a manhã até a noite, a ponto de inclusive sonhar com essas atividades.

"Ao fazer, deixamos de lado - No fundo, tenho aversão a todas essas morais que dizem: ‘Não faça isto! Renuncie! Supere a si mesmo!’ - mas tenho em boa conta as morais que me impelem a fazer algo e a refazê-lo, e sonhar com ele à noite e em nada pensar senão em fazê-lo bem, tão bem como somente eu posso fazê-lo!"
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência', aforismo 304)

Dizer sim à vida não é o mesmo que aceitar tudo o que acontece ou suportar o que não faz bem, mas operar na vida um princípio de seleção e exclusão, revisando tudo aquilo que nos amplia e o que nos enfraquece, por meio de uma peneira que só deixa passar o que fortalece e potencializa sua vida, deixando de lado tudo o que nos despotencializa ou inferioriza. Este gosto posto em prática repele naturalmente o que nos prejudica.

Por isso, é preciso estar disposto a deixar de lado tudo aquilo que nos prejudica, para ser possível dizer sim ao que nos potencializa. A afirmação de si é também uma forma de afirmar a vida e o mundo. A criação implica sempre em destruição, é destruindo o antigo, as velhas tábuas de valores, que abrimos caminho para o novo, para ser possível criar novas experiências.

"Somente enquanto criadores podemos destruir! (...) criar novos nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas ‘coisas’."
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência', aforismo 58)
O rompimento com os valores morais implica numa necessidade de aceitar e transmutar o sofrimento, fazendo algo novo e mais contagiante dele, dizendo sim ao que amplia e potencializa a vida, e deixando de lado tudo o que impede ou diminui nossas experiências. Assim passamos a avaliar nossas escolhas e a partir de nossos afetos e não mais a partir de uma moral que nos diz o que é certo ou errado, bom ou ruim, mas avaliamos a partir daquilo que nos potencializa, abrindo caminhos e formas de vida.

"Nós negamos e temos de negar, pois algo em nós está querendo viver e se afirmar, algo que talvez ainda não conheçamos, ainda não vejamos!"
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência', aforismo 307)






Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referência:
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
THOMASS, Balthasar. Afirmar-se com Nietzsche. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

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