Algumas críticas à psicologia tradicional

Cena do filme 'Pink Floyd - The Wall', 1982

Psicologia tradicional é um termo abrangente, que caracteriza toda psicologia que busca descrever, nomear e classificar os fenômenos psíquicos com o intuito de prever e controlar os comportamentos por meio do ajustamento e adaptação das pessoas a um modelo de vida, de acordo com normas sociais convencionais.

A psicologia tradicional, em sua característica positivista, tende a classificar e a estabelecer uma rígida distinção entre o "normal" e o "anormal", fazendo com que cada vez mais pessoas se sintam mal por suas diferenças, do que auxiliando para que estas lidem com suas dificuldades, em especial quando seus modos de vida não convergem com o padrão definido como "adequado".

Esta tendência utiliza um paradigma de saúde com base no modelo de "saudável" como "adequado" a um modo de vida específico, em oposição ao "doentio" ou "inadequado", atribuindo estados patológicos aos que não combinam com os padrões "adequados". Termos como "ajuste", "maturidade" e "normal" não são usados não apenas como medidas de verificação do sofrimento emocional, mas como prerrogativas morais que instituem modos de ser e de se portar na relação com os outros e consigo mesmo.

Muitas dessas noções são arbitrárias, como quando se diz que uma pessoa é "imatura" por colecionar gibis ou jogar video-game, inferiorizando a mesma e colocando seus hábitos como algo a ser "ajustado", ao mesmo tempo que não se questiona um piloto de corrida, por ser entendido como um comportamento "adulto". Por isso, é imprescindível questionar os critérios utilizados para estabelecer as noções de "normal", "adequado" e "saudável", muitas vezes relacionados a uma certa "adaptação social".

"O paciente pode afirmar que é o novo Messias, que viu discos voadores ou que está sendo perseguido pelos marcianos. Essas afirmações seriam consideradas sintomas de doença mental apenas se o observador não acreditar no paciente ou na viabilidade do que ele se diz ser ou diz ter -lhe ocorrido. Isso torna evidente que o julgamento "X é um sintoma mental" pressupõe implicitamente que as idéias, conceitos ou crenças do paciente são comparadas com as do observador e da sociedade em que ambos vivem."
(Frayze-Pereira, em 'O que é Loucura')

Além disso, essa psicologia que visa à normalização opera mais por questões morais do que sobre o sofrimento da pessoa, tendo como intuito manter a pessoa num esquadro. Há muitas tendências em psicologia propõem formas de ajustamentos, partindo de uma noção prévia do que seja "adequado" em oposição ao "inadequado", propondo uma "correção" dos comportamentos e das emoções, direcionando a um modelo que se supõe "correto", "normal" e "saudável", sem questionar sobre esse modelo.

Precisamos colocar em questão os conceitos que nos são apresentados como "normal" e "anormal", bem como "saudável" e o "patológico", para ser possível pensar uma prática que, ao invés de extinguir as diferenças, nos possibilite considerar e possibilitar distintos modos de vida. Para isso, torna-se necessário um olhar crítico sobre a atuação daqueles que se dispõem a ajudar outra pessoa terapeuticamente, problematizando suas práticas e questionando os modelos de "saúde" e "doença", para se abrir às experiências das pessoas em suas diferenças singulares, ao invés de enclausurar estas em teorias.

A vida não é algo pronto, os modos de ser e de viver estão em constante movimento e transformação. Não há um modelo adequado de ser humano, pois ele está sempre por fazer, se diferenciando continuamente, se tornando outro. As noções de um modelo de "normal" e "saúde" impedem a criação de novas formas de vida. A psicologia moderna opera a classificação e categorização das experiências de outras pessoas, reduzindo e enfraquecendo o contato com outra pessoa, pois tratam de generalizações e convenções, deixando de lado as peculiaridades de cada um.

Essa tendência de psicologia moderna positivista e tradicional não consegue encarar o diferente, pois tende a associar a diferença imediatamente a uma forma de "desajustamento", "problema" ou "falta", passa então a patologizar as diferenças, onde a experiência do outro é recortada e reduzida a um fragmento totalizado pelo observador. Os psicólogos que assim atuam e declaram "verdades" sobre as pessoas nem sequer tomam contato com suas experiências.

"(...) designa-se louco o indivíduo cuja maneira de ser é relativa a uma outra maneira de ser. E esta não é uma maneira de ser qualquer, mas a maneira normal de ser. Portanto, será sempre em relação a uma ordem de "normalidade", "racionalidade" ou "saúde" que a loucura é concebida nos quadros da "anormalidade", "irracionalidade" ou "doença"."
(Frayze-Pereira, em 'O que é Loucura')

Creio ser necessário e interessante nos abrir ao diferente e ao estranho, não para classificar tais diferenças, não supondo saber algo sobre aquilo que se vê, mas acolhendo o outro do modo como este se apresenta em suas singularidades e diferenças. Para isso, precisamos largar mão do desejo de enquadrar, definir, explicar e interpretar. Não há nada a ser interpretado nos modos de ser de outra pessoa, mas uma rica e vasta experiência que podemos nos aproximar em suas peculiaridades próprias.

A existência não é algo a ser examinado e explicado. Não precisamos organizar a experiência do outro em classificações, pois a ordem impõe uma configuração e um caminho, muitas vezes contrário ao fluxo das experiências. Me parece mais interessante acompanhar os modos de ser, sentir, pensar, valorar e reagir de cada pessoa, suas sensações a partir de sua experiência. O que interessa são as diferenças e não as repetições, a experiência e não a explicação.

Deste modo podemos pensar outra psicologia, que rompe com o intuito moderno de explicar, classificar e controlar, conduzindo as pessoas a modelos previamente estabelecidos como "adequados" e "normais", mas nos dispondo à experienciação das vivências de outras pessoas, abertos às diferenças, singularidades e complexidades de cada um. Uma psicologia que dialogue mais com a filosofia e as artes, do que com a ciência positivista.

Esta psicologia diferenciada, que está porvir, possibilitará outros entendimentos e compreensões sobre o sofrimento emocional, os distintos modos de ser e se colocar e as práticas diversas de cuidado de si, para além da psicologia tradicional, não tendo como foco categorizar pessoas e eliminar sofrimentos a partir de ajustamentos, expandir possibilidades para criar outros modos de vida.

Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
FRAYZE-PEREIRA, João. O que é Loucura. São Paulo: Brasiliense, 2002.

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