Genealogia em Nietzsche e Foucault


A genealogia é um termo geralmente utilizado para se referir ao estudo e a descrição das filiações de ideias. Em filosofia, refere-se a um procedimento utilizado por Friedrich Nietzsche em sua obra 'Genealogia da Moral' e utilizado por Michel Foucault no 'Vigiar e Punir', entre outras.

Em Nietzsche, a genealogia evidencia os interesses ocultos das normas e valores da tradição, recusando a concepção de uma verdade essencial e originária, partindo da avaliação de forças e interesses na constituição de valores e saberes, ressaltando a diversidade dos impulsos e suas transformações. Noções como "essência" e "verdade" são entendidas como interpretações valorativas, convenções que possibilitam um modo de vida específico, num dado momento, e não valores imutáveis.

A genealogia pressupõe uma crítica, pois entende que há condições sócio-históricas, econômicas, culturais e lutas de interesses que possibilitam o surgimento e a prevalência de certos valores, que operam uma tendência dominante em detrimento de outras, tendência esta resultante de embates diversos. Busca-se questionar os desejos daqueles que postulam um valor, entendimento ou prática em detrimento de outras, colocando em questão o valor dos valores.
"O empreendimento genealógico supõe que valores ou verdades não devem ser considerados em si mesmos, pois só possuem sentido quando ligados à sua origem. Essa origem é derivada."
(Japiassu & Marcondes, em 'Dicionário Básico de Filosofia')
Este procedimento contraria a crença em valores universais e atemporais, evidenciando os valores como criações humanas, entendendo que estes não se desenvolvem de maneira ascendente ou retilínea, mas em traçados diversos, múltiplos e díspares, se constituindo em meio a rupturas e embates, onde um valor se sobrepõe aos outros. A genealogia, portanto, se coloca ao estudo da emergência e das condições de surgimento dos valores, captando a gênese deste valor.

A avaliação dos valores possibilita destacar seu surgimento e suas transformações, analisando os interesses que envolveram uma valoração sobre outras, entendendo que toda ação humana estabelece avaliações. Por suas características, contraria o positivismo, que se restringe aos fatos objetivos; o historicismo, que entende a história ter um progresso; a metafísica, que estabelece os valores morais de maneira racional; e ao cientificismo utilitarista, que explica os costumes a partir de sua finalidade.

Com influências de Nietzsche, o filósofo francês Michel Foucault também utilizou a genealogia, especialmente em sua obra 'Vigiar e Punir', onde fez um estudo sobre a transformação das técnicas de poder e das formas jurídicas de punição. Para Foucault, a genealogia parte da diversidade e da dispersão, dos acasos e dos acidentes, buscando retomar os acontecimentos em suas singularidades, ao invés de fazer uma mera reconstituição histórica dos fatos.

Segundo Foucault, a genealogia é uma forma de pesquisa histórica que contraria a concepção unívoca ou "meta-histórica", evidenciando a diversidade e a dispersão, não tendo como intuito estabelecer uma continuidade ou evolução histórica, mas se aproximando das diferenciações e singularidades dos acontecimentos, validando saberes descontínuos e não legitimados nas relações sociais, nas artes e na economia, não tendo como intuito alcançar um conhecimento "verdadeiro".
"A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar a dissipá-la; ela não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira pátria à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam."
(Michel Foucault, em 'Microfísica do Poder')
A genealogia se opõe a busca por uma essência ou "verdade" no sentido atemporal e imutável, constatando que as coisas não possuem uma linearidade ou continuidade, e que por trás de cada verdade, valor ou regra há intuitos diversos, por isso não visa captar sua emergência na semelhança, mas em suas diferenciações. Trata-se de uma pesquisa que não funda, mas fragmenta, apontando as distinções daquilo que parecia unívoco.

Foucault utiliza o método genealógico para investigar as constituições dos discursos e práticas na filosofia, literatura, artes e ciências. Sua genealogia recoloca a condição de possibilidade dos acontecimentos, que decorrem mais das contingências do que da necessidade, retomando os saberes locais, o que foi descartado e não legitimado, colocando questões como: o que possibilitou sermos como estamos sendo, fazer o que fazemos e pensar o que pensamos?

O procedimento genealógico é uma tentativa de se aproximar dos saberes e práticas históricas buscando a marca dos acontecimentos singulares, colocando em questão a possibilidade de emergência dos acontecimentos. Foucault escreve que a genealogia é uma "anticiência", pois procede de maneira contrária aos discursos regidos por fins específicos, apresentando as contrariedades a tudo aquilo que parece seguro e verdadeiro.
"(...) para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história - os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar uma curva lenta de sua evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram."
(Foucault, em 'Microfísica do poder')
A genealogia é apontada por Foucault como a "minúcia do saber", pois exige uma pesquisa sobre uma grande quantidade de materiais e demanda paciência. A genealogia não busca uma identidade, mas justamente os acidentes e desvios, entendendo que não há uma essência por trás das coisas, mas distintos jogos de interesses, destacando os acontecimentos em suas diferenças, na fragmentação do que parecia único e na heterogeneidade do que parecia homogêneo.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 
GIACOIA JR, Oswaldo. Nietzsche: Para a genealogia da moral. São Paulo: Scipione, 2001.
JAPIASSU; MARCONDES. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
MARTON, Scarlett. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.
REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.
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