Nietzsche foi um filósofo que colocou em questão os valores morais enquanto uma regra normativa de conduta de caráter universal e atemporal, questionando as noções de bem e mal, verdade e mentira, sanidade e loucura, destacando a possibilidade de criar novos valores para uma vida mais afirmativa, em favor das potências afetivas.
Sua filosofia não pretendeu apresentar uma moral normativa, mas possibilitar a reavaliação dos valores que nos são apresentados como absolutos e imutáveis, a partir de uma revisão ética pessoal, reavaliando o que é bom ou ruim para cada pessoa, a partir de sua própria avaliação, contrário aos modelos de psicologia e psiquiatria tradicionais que partem de uma normativa geral, entendendo a saúde como uma questão pessoal.
"Não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o que deve significar saúde também para seu corpo. Assim, há inúmeras saúdes do corpo."
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência')
Para Nietzsche, o corpo é uma multiplicidade em constante luta, que visa a intensificação da potência para a criação, a superação e a saúde. Essa luta entre os afetos é um ensaio para novas formas de vida, diferentes modos de ser, onde o movimento e a mudança possibilitam uma elevação na potência de agir. Alegre é o sentimento que a potência aumenta, que algo foi superado e possibilita novos caminhos.
Neste sentido, a saúde corresponde à capacidade de manter os afetos em movimento, para criar novas formas de vida, que mesmo quando atravessa dificuldades busca novos movimentos de superação, para se recriar. A grande saúde é potente e alegre, ela supera os momentos de dificuldade, pois se conquista e se reconquista constantemente a partir do embate com o sofrimento.
"(...) grande saúde – uma tal que não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar."
(Nietzsche, em ‘A Gaia Ciência’)
Assim, não se busca uma saúde ideal nem uma tentativa de evitar os sofrimentos, mas um processo de incorporação e transformação da doença, capaz de criar novos modos de ser, querer, sentir e pensar a partir da própria experiência de sofrimento. A doença, para Nietzsche, seria a parada e repetição numa dificuldade, sem conseguir fazer desta experiência algo novo, criativo e potencializador.
Nietzsche propõe uma prática consigo mesmo para lidar com as situações adversas, que consiste em não reagir imediatamente a um estímulo nocivo, a reação acaba gerando um enorme gasto de energia. Diante do estímulo o mais interessante seria reagir o mínimo possível e esquecer quanto antes aquilo que lhe afetou, para que a má lembrança não se torne uma ferida pior do que a experiência.
Ele apresenta um homem que vingou como aquele que experimenta a vida de uma forma potente, característica do tipo saudável, que seleciona os estímulos que lhe chegam antes de sua reação, e sobretudo sabe esquecer, utilizando o esquecimento como uma força plástica e regeneradora que o possibilita criar e experimentar novas formas de vida.
"Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos (...). Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece. De tudo o que vê, ouve e vive forma instintivamente sua soma: ele é um princípio seletivo, muito deixa de lado. Está sempre em sua companhia, lide com homens, livros ou paisagens: honra na medida em que elege, concede, confia. Reage lentamente a toda sorte de estímulo, com aquela lentidão que uma larga previdência e um orgulho conquistado nele cultivaram — interroga o estímulo que se aproxima, está longe de ir ao seu encontro."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')
Aquele que seleciona avalia a vida a partir de sua experiência, e não de uma moral, constatando o que lhe amplia ou diminui sua potência de agir. Com isso deixa muita coisa de lado, descartando tudo aquilo que não lhe faz bem. Não se coloca numa luta contra aquilo que o faz sofrer ou que o despotencializa, mas promove um redirecionamento de disposições e afetos para aquilo que o faz alegrar ou que o potencializa.
Trata-se de tomar contato com a sua medida, cabendo a cada pessoa diagnosticar a si mesmo: seus sintomas e sua decadência, para encontrar os "remédios certos" para sua cura, considerando e se apropriando de suas singularidades, potencializando suas diferenças ao invés de evitar, considerando seus gostos e excentricidades, escolhendo o que lhe é mais apropriado a cada momento em termos de alimentação, atividades, moradia, clima, relações, etc.
"(...) essas pequenas coisas — alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo — são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se como importante. Nisto exatamente é preciso começar a reaprender."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')
O ser ressentido é aquele que permanece em pensamentos e experiências fixas, priorizando a memória e a repetição ao invés do esquecimento e da experimentação, tendo perdido seu interesse pela vida enquanto criação e renovação. Contrário a este, Nietzsche propõe uma ética da afirmação da vida, partindo do corpo e da avaliação das experiências, em favor das potências criativas que ampliam e possibilitam novas formas de vida, ensaiando e criando novos valores para si, continuamente.
Sua terapêutica propõe um diagnóstico da dinâmica afetiva para se colocar contra os afetos do ressentimento, valorizando os afetos que aumentam nossa potência de agir por meio da criação de novos valores, afirmando a vida em sua multiplicidade, despertando novas formas de agir em favor das singularidades e diferenças ao invés de moralizar a vida a partir de receitas e fórmulas prontas.
Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.
Referências:
MOREIRA, A. B. (2010). Nietzsche e Espinosa: fundamentos para uma terapêutica dos afetos. Cadernos Espinosanos, (24), 141-165.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.