A partir da leitura e de estudos em Nietzsche é possível vislumbrar uma psicologia trágica, que se situa para além de bem e mal, que encara a vida como uma obra de arte, afirmando esta em seu caos e em sua beleza. Uma perspectiva que se direciona para dizer "sim" ao que fortalece e potencializa e "não" ao que enfraquece e inferioriza. Entende a existência como uma constante criação e destruição, possibilitando novos modos de vida, mais salutares e criativos.
Para tratar sobre a psicologia trágica, vou mencionar inicialmente sobre a filosofia trágica, que propõe a experiência de simultaneidade entre harmonia e desarmonia, caos e ordem, beleza e feiura, verdade e mentira, por meio da união entre os instintos apolíneo e dionisíaco. Esta filosofia não busca apregoar uma nova metafísica, mas possibilitar a experimentação e criação de novos modos de vida, libertos de uma moral estabelecida.
O que fez a sociedade ocidental atribuir maior valor a verdade ao invés da mentira ou da falsidade, a sanidade ao invés da loucura, a identidade ao invés da estranheza, a semelhança ao invés da diferença, a estabilidade ao invés da mudança, a essência ao invés da existência, ao ideal ao invés do real, a razão ao invés da emoção, a beleza ao invés da feiura, a harmonia ao invés da desarmonia, a luz ao invés da escuridão, ao ajustamento ao invés da rebeldia?
Por qual motivo não exaltamos o inverso, ou seja, o desconhecimento ao invés do conhecimento, o esquecimento ao invés da memória, a barbárie ao invés da civilização, a desmedida ao invés da medida, a inconstância ao invés da constância? Por que não a experiência contraditória entre os opostos, a não-divisibilidade ao invés da unidade, ou mesmo a multiplicidade, a experiência paradoxal de caos e ordem, bem e mal, verdade e falsidade?
"É por puro preconceito moral que atribuímos maior valor à verdade do que à falsidade."
(Nietzsche, em ‘Fragmentos póstumos’)
Segundo Nietzsche, foi o instinto gregário e a moral dos fracos que promoveram uma domesticação da vida, padronizando e a normalizando dos modos de existir a partir da priorização de um ideal de verdade, de bondade, beleza e justiça, ao invés de seu oposto. Essa ordenação foi utilizada como um controle de condutas, conduzindo os distintos modos de vida possíveis, com o argumento de tornar possível a convivência social. Porém, tais valores priorizados não representam a verdade, muito menos a realidade, não passam de uma ficção criada para se viver em sociedade.
"O homem não ama necessariamente a verdade: deseja suas consequências favoráveis. O homem também não odeia a mentira: não suporta os prejuízos por ela causados. (...) A obrigação, o dever de dizer a verdade nasce para antecipar as consequências nefastas da mentira. Quando a mentira tem valor agradável ela é muito bem permitida."
(Roberto Machado, em ‘Nietzsche e a verdade’)
O filósofo alemão apresenta a filosofia trágica como a combinação entre a disposição apolínea e a dionisíaca, a união entre ordem e caos, entre medida e desmedida, entre razão e intuição. Portanto, uma psicologia trágica também tenderia a derivar dessa perspectiva. Partindo de uma aceitação da vida tal como se apresenta, com suas dores e sabores, alegrias e tristezas, sanidades e loucuras, para partindo dela fazer uma avaliação do que faz bem ou não a um corpo.
"Toda a psicologia manteve-se vinculada, até hoje, a preconceitos e apreensões de ordem moral; não ousou adentrar em suas profundezas."
(Nietzsche, em 'Além do bem e do mal', aforismo 23)
Nietzsche escreveu, em 1886, que toda psicologia, até o momento, foi pautada a partir da razão apolínea, numa tendência de busca pela ordem, pela constância e pela definição, partindo de uma noção metafísica de ser humano, estabelecendo distinções bem delimitadas entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o adequado e o inadequado, o normal e o anormal. Será que ainda hoje, grande parte da psicologia ainda não permanece assim?
Diferenciando-se a uma psicologia apolínea, normativa e moralista, podemos pensar com Nietzsche uma psicologia trágica, seria aquela que não busca a ordem e constância apolínea, mas que assume a tendência dionisíaca da desordem e da inconstância, que não entende a saúde como algo separado da doença ou a normalidade separada da anormalidade, mas a saúde como parte da doença e a normalidade inseparável da anormalidade.
"(...) temos que parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo."
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência')
Neste sentido, a loucura seria apenas um modo de uma vida sadia, e as diferenças seriam distintas maneiras de se posicionar diante da vida, entre tantas outras possíveis. Enfim, para a psicologia trágica, não haveria a necessidade de uma busca pela ordem ou normalidade, mas possibilitaria uma abertura para a desordem e a anormalidade, como nunca se viu antes, lidando com os aspectos luminosos e obscuros da existência humana.
Não necessitando da busca pela normalidade ou pela "ordem" psíquica, esta psicologia se situaria além de bem e mal, além dessas caducas determinações metafísicas que pressupõem a existência prévia de um "organismo sadio" e de um "organismo doente". Ao invés de atuar contra a doença, esta psicologia atuaria com o reconhecimento da doença, utilizando esta como recurso para alcançar a grande saúde.
"Enfim, permaneceria aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da doença, até para o desenvolvimento de nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quanto da sadia; em suma, se a exclusiva vontade de saúde não seria um preconceito, uma covardia e talvez um quê de refinado barbarismo e retrocesso."
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência', aforismo 120)
Deste modo, por meio das experiências de doença e loucura, seria possível ir em direção às experiências de saúde, partido sempre das avaliações da pessoa sobre seu próprio corpo, ao invés de se pautar a partir de avaliações morais sobre o que seja bom ou ruim. Trata-se de uma psicologia que dá importância ao sofrimento, aos instintos e desejos, de modo a se abrir para novas experiências e distintas perspectivas, caminhando para o que seja saudável para si.
Ao invés de buscar evitar os sofrimentos ou ficar ressentindo momentos dolorosos, esta psicologia daria a importância devida ao sofrimento, sem ampliar ou reduzir, mas visando transmutar o mesmo em experiências de saúde e potência. Assim, um corpo forte e potente não existe previamente, ele se constitui a partir da experiência de dor e de sua superação, tal como propõe o "além-do-homem".
Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.
Referências:
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.