O livro 'A lógica da internação: instituições totais e disciplinares (des)educativas', de Silvio José Benelli, tem como intuito desvelar a lógica que organiza os mecanismos de funcionamento das instituições de internação, levando em consideração os efeitos éticos produzidos.
A partir de referências como Michel Foucault e Ervin Goffman, aponta como as instituições produzem a subjetividade tanto dos internados quanto dos que trabalham na instituição, sendo utilizada como um instrumento para normalizar pessoas. No livro o autor destaca fenômenos psicossociais, comentando inclusive que na maioria das vezes são desconhecidos e ignorados por profissionais da Medicina, Pedagogia, Psicologia, Serviço Social e do Direito.
Fragmentos do primeiro capítulo do livro:
Nesses ambientes, notamos que continuam sendo implementadas inclusive as estratégias mais grosseiras de normalização disciplinar mapeadas por Goffman (1987) e Foucault (1999b), apesar da sofisticação trazida pela tecnologia.
Podemos afirmar que dominação, aumento da alienação social, adaptação sociocultural e mistificação ideológica são funções das diversas instituições sociais na sociedade burguesa capitalista. As Ciências Humanas emergentes nos séculos XIX e XX nasceram com esse mandato de gerenciamento das populações, para a manutenção do sistema (Foucault, 1999b). Desde sempre, e muito antes, essa também foi a função social da religião: manutenção ideológica do sistema social, na Antiguidade e no Mundo Medieval. Na Modernidade, o controle social estatal ganhou ares de cientificidade (Foucault, 1999b).
Foucault (1999b) ressalta que a principal função das instituições no estrato sócio-histórico da sociedade disciplinar é a de normalização, implementando práticas classificatórias hierarquizantes e distribuindo lugares.
O que um estabelecimento visa é controlar os desvios dos sujeitos enquanto indivíduos, esquadrinhando seus comportamentos e efetuando sobre eles uma vigilância constante.
Podemos afirmar que a institucionalização da vida do indivíduo produz um tipo de subjetividade específica, trabalhando na sua formação mediante práticas objetivantes e subjetivantes que incidem diretamente na sua constituição subjetiva, promovendo a explicitação de várias de suas possibilidades neuróticas, psicóticas e perversas.
A “observação” implica os a priori epistemológicos da visibilidade, vigilância e exame, que produzem relatórios de dados coletados num campo de investigação, elas constituem as técnicas objetivantes. As técnicas subjetivantes são derivadas de modalidades tecnológicas da “confissão”: sessões de associação livre, de entrevistas e questionários, estratégias que colocam o homem para falar sobre si. É interessante notar que a Psicologia parece tratar do comportamento, da conduta, das emoções, da personalidade e do psiquismo que estariam alojados em algum lugar da interioridade do corpo do indivíduo. Mas Foucault nos faz atentar para outros aspectos: o olhar, a visibilidade, a vigilância, os exames e testes que mensuram, a arquitetura dos edifícios, as regras escritas e as informais e os detalhes da prática cotidiana nas instituições. Todos esses elementos seriam operadores e fazem parte do processo de produção da psicologização do ser humano e do processo de construção da interioridade psíquica do indivíduo.
Na modernidade, o confessionário do padre foi substituído pelo consultório e pelo divã do psicólogo, lugar onde o cliente produz suas associações livres, que normalmente podem ter um forte conteúdo sexual. Foi olhando para si, meditando e refletindo sobre si mesmo, sob o olhar vigilante do outro, que os homens foram se individualizando, acreditando em sua singularidade pessoal.
O psiquismo foi produzido no homem por meio de discursos filosóficos e científicos, mas também foi construído por meio de técnicas e por práticas inventadas para a docilização e adestramento dos corpos humanos. Curiosamente, foram invenções e tecnologias físicas e concretas que produziram o surgimento da experiência do fenômeno psíquico no ser humano. A vigilância externa foi interiorizada como auto-observação, o confinamento e o silêncio levaram à introspecção, as normas, os regulamentos, as regras implícitas e explícitas mobilizaram a conduta, a postura correta; os relatórios dos casos, as provas, avaliações e exames obrigaram o indivíduo a se comportar adequadamente. Desse modo, as relações de poder engendraram a interioridade psicológica.
As práticas da Psicologia produzem tanto a objetivação (disciplinar) quanto a subjetivação (confessional), criando seus objetos e sujeitos. O saber que suas práticas produzem é essencial para a expansão do biopoder (Foucault, 1988) na sociedade contemporânea. A potência do biopoder consiste na definição da realidade bem como na sua produção. Os saberes psi devem abrir mão do poder de controle que lhes foi historicamente delegado, quando se encomendava que eles gerenciassem a loucura e controlassem os distúrbios da população. Superando a mera função de mantenedores da ordem pública, renunciando à condição de instrumentos promotores de segurança pública ao administrarem a “periculosidade social” dos indivíduos desviantes, os profissionais psi podem orientar sua ação na direção de uma ética singularizante.
Acreditamos ser necessário pensar as relações de poder situadas no conjunto de práticas sociais que produzem os sujeitos como corpos dóceis, adestrados e seres desejantes (Foucault, 1999b). Uma articulação pertinente dos fenômenos emergentes no contexto institucional pode ser elaborada num processo de análise institucional, procurando superar posicionamentos funcionalistas ingênuos.
A inércia do instituído tende a mover os atores institucionais na direção de receitas que prometam soluções mágicas e rápidas para seus impasses e conflitos. Assim, buscam-se reformas para manter tudo como está, produzindo modificações em aspectos secundários que geram somente efeitos paliativos (Baremblitt, 1998).
Seria preciso ousadia para modificar o eixo central das discussões: teríamos que problematizar o objeto institucional das diversas instituições totais, “desnaturalizando”, “despsicologizando”, “dessociologizando” o homem que aí é processado, tomando-o como um sujeito infinitamente mais complexo e multifacetado do que a caricatura empobrecida que faz dele um personagem habitante do universo institucional totalitário.
Trata-se mesmo de promover uma revolução conceitual: dependendo de como vemos determinado objeto, partimos da consideração de sua suposta natureza essencial para a produção de saberes e técnicas para trabalhá-lo. Os meios e os fins seriam então decorrentes dessa natureza presumida do objeto. É por isso que acreditamos na importância de uma análise das práticas, daquilo que fazemos no contexto institucional. O fazer embute em si uma teoria, um objeto, saberes e técnicas: produz subjetividade, modos de existência, sujeitos, universos de materialidade social. Tal processo pode se submeter ao sentido do processo hegemônico de produção de subjetividade, mas também pode orientar-se no sentido de produções singularizadas.
Entendemos que os problemas institucionais são também problemas sociais. Soluções técnicas muitas vezes não são suficientes para resolvê-los. Eles exigem soluções políticas para sua metabolização.