Michel Foucault foi um filósofo que rompeu com o modo tradicional de filosofar, não tendo como busca a verdade, mas fazer aparecer os elementos implícitos dos saberes e das práticas. Constatou que o modo como entendemos as coisas e a nós mesmos é resultado de um conjunto de condições históricas que se transformam, alterando os modos de ser.
Ele se dedicou à história das ideias e das práticas, e o modo como estas constituem subjetividades. Seus estudos são resultados de análises documentais históricas e de campo, relacionando a filosofia com a história, o direito, a medicina e a antropologia. A partir de seus estudos em 'Vigiar e Punir', Foucault constatou uma mudança no entendimento do corpo humano na passagem do século XVIII para o século XIX, onde passou a ser percebido enquanto objeto e alvo de poder.
Neste período, uma nova atenção foi dedicada ao corpo, manipulando e treinando este para obedecer e responder a comandos, tornando este hábil e eficiente. Novas técnicas de poder surgem neste momento, onde o corpo vai sendo analisado visando ser ajustado e adestrado, tornando um corpo dócil, que pode ser utilizado e transformado.
"O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos."
(Foucault, em ‘Vigiar e punir’)
As técnicas de poder não atuam mais sobre o corpo enquanto uma coletividade, mas em suas unidades, operando individualmente e detalhadamente, exercendo uma coerção em seus movimentos, gestos, atitudes e velocidades. Essa nova disposição sobre o corpo foi resultante de diversos processos e distintas origens, constituindo aos poucos um método a ser operado em escolas, hospitais, exércitos e fábricas.
As técnicas disciplinares envolvem diversas práticas e produzem novos saberes, atravessando assim a pedagogia, a medicina, a tática militar e a economia, possibilitando novas formas de controle e utilização das pessoas, pautadas em processos, saberes e dados. Todo esse procedimento aparece curiosamente no mesmo período do humanismo moderno. A disciplina inicia com a distribuição dos indivíduos no espaço, produzindo corpos dóceis e submissos.
"Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo (...). A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)."
(Foucault, em ‘Vigiar e punir’)
A anatomia política constitui uma racionalidade técnica operada sobre o corpo, por meio de regulamentos e inspeções, que realiza um controle das mínimas atividades do corpo. Cada indivíduo passa a ocupar um espaço, e cada espaço é dedicado a um indivíduo, isso possibilita saber onde e como encontrar cada indivíduo, permitindo uma constante vigilância de cada um.
Passa-se então a conhecer detalhadamente cada indivíduo em seu espaço, para melhor utilizá-lo. A disciplina opera uma análise individual. O uso das localizações funcionais codifica um espaço que antes ficava livre e aberto, disponível para distintos usos. Essa nova forma de utilizar a arquitetura torna o todo o espaço funcional, facilitando a vigilância, rompendo com comunicações perigosas e tornando o espaço dividido.
Nos hospitais começa a ser utilizado um sistema para verificar o número de doentes, onde cada leito passa a ter um prontuário com informações detalhadas de sua permanência e estado de saúde, separando lugares dos contagiados e portadores de diferentes doenças. É realizado um estudo sobre a identidade de cada um, e o estabelecimento dos lugares que cada um ocupa e pode ocupar.
"Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora."
(Foucault, em 'Vigiar e Punir')
A disciplina transforma uma multiplicidade de indivíduos dispersos, inúteis e até mesmo perigosos, em grupos organizados. Passa-se a fazer um registro geral das forças armadas, dos doentes, das doenças, dos materiais de uma fábrica, escola ou hospital. Tudo passa a ser distribuído por meio de uma análise utilitária, o poder e o saber organizam o múltiplo, com o intuito de controlar e direcionar.
São utilizadas táticas de ordenamento espacial e categorizações. O controle do horário tem como intuito estabelecer proibições, obrigar ocupações e regulamentar ciclos de atividades em escolas, fábricas e hospitais. Pretende-se garantir a qualidade do tempo empregado por meio de seu controle e da anulação de tudo o que possa perturbar e distrair, estabelecendo um tempo integralmente útil, mantendo o corpo sempre aplicado em alguma atividade.
O corpo e o gesto passam a ser utilizados em correlação, para alcançar uma melhor relação entre cada gesto e a atitude geral do corpo, de modo a aumentar sua eficácia e a rapidez da atividade realizada. Um melhor uso do corpo permite um melhor uso do tempo, onde nada deve ficar ocioso ou inútil, e toda ação deve possibilitar suporte às atividades. Um corpo bem disciplinado é aquele que utiliza mínimos gestos.
"A articulação corpo-objeto: a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro."
(Foucault, em ‘Vigiar e punir’)
A articulação corpo-objeto decompõe o movimento em duas atividades que acontecem simultaneamente: uma das partes do corpo que serão utilizados para a atividade (mão direita dedos da mão, joelho, olho, cotovelo, etc.), e a outra dos elementos do objeto manipulado (lápis, cano, parafuso, etc), sendo colocados em correlação, fixando uma ordem e combinando um movimento ao outro, de modo a constituir um complexo corpo-instrumento-máquina.
O tempo passa a ser utilizado de maneira crescente, visando extrair sempre mais momentos disponíveis e forças úteis, visando alcançar o máximo de rapidez e eficiência de cada corpo. Quanto mais se decompõe o tempo, mais bem utilizado passa a ser, acelerando uma operação visando um melhor rendimento. O ritmo imposto por sinais, apitos e comandos são utilizados para demarcar normas e acelerar as atividades com o menor gesto.
As atividades de cada pessoa são registradas individualmente: seu comportamento e trabalhos são acompanhados por um inspetor que utiliza técnicas de apropriação do tempo, regendo as relações do tempo, os corpos e as forças. O tempo disciplinar se impõe pouco a pouco à prática pedagógica, uma pedagogia analítica minuciosa, para o controle detalhado e intervenções pontuais, como correções e castigos, possibilitando utilizar indivíduos de acordo com sua série.
A disciplina compõe forças para obter um aparelho eficiente. O corpo é articulado com outros corpos num conjunto, para extrair a máxima quantidade de forças de cada um, combinando com um grupo. Essa combinação das forças exige um sistema preciso de comando, utilizando ordens pontuais e eficientes por sua brevidade e clareza. A ordem não precisa ser explicada, deve apenas provocar o comportamento desejado, por meios de sinais e códigos simples, previamente estabelecidos.
"O treinamento das escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais — sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre (...). O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles."
(Foucault, em ‘Vigiar e punir’)
A disciplina produz uma nova relação entre as pessoas nos espaços institucionais, por meio de uma nova disposição das estruturas arquitetônicas. Trata-se de um novo estudo sobre a arquitetura, a mecânica e a economia do corpo, visando tornar este cada vez mais útil e dócil, o que Foucault chamou de "corpos dóceis".