O que é Psiquiatria Alternativa - Alan Serrano

O livro 'O que é Psiquiatria Alternativa' aponta sérias críticas sobre as práticas em psiquiatria e psicologia, sobretudo as que visam um ajustamento moral e social. Apresenta um histórico destas ciências e de seus interesses sociais e econômicos, mencionando Michel Foucault, Wilhelm Reich, Deleuze e Guattari, Monik Elkaim, Gerard Caplan, Thomas Szasz, Ronald Laing, David Cooper, Franco Basaglia e Alfredo Moffatt.

Escrito por Alan Indio Serrano, médico gaúcho especialista em psiquiatria, reflete sobre uma psiquiatria libertadora, com consciência crítica sobre sua atuação e seu papel político e social, visando ultrapassar a alienação da psiquiatria tradicional, auxiliando na busca das necessidades negligenciadas de cada pessoa, dialogando com a antipsiquiatria, a terapia radical e a psiquiatria democrática.

Trechos do livro:

Nossa sociedade teme a loucura, rejeita-a e a imagina como um inferno onde não existe qualquer razão. Pensando assim, temos a impressão de que somos perfeitos, normais, completamente razoáveis. Nossa sociedade é boa e correta. Nela tudo é lógico. A falta de lógica é doença. A falta de lógica, se acontece, é um caso especial que deve ser levado imediatamente para o hospício. Assim, traçamos um limite entre a normalidade e a loucura. Neste limite, geralmente, encontra-se o muro do asilo ou o rótulo de paciente psiquiátrico. Do lado de cá estão os sadios, de lado de lá, os loucos. Se não nos comportamos direitinho, seremos mandados para o estado de lá.

A psiquiatria tem sido o modo como a sociedade moderna interpreta e se relaciona com o sofrimento mental. Destes sofrimentos, a loucura é o mais chamativo. A psiquiatria é, principalmente, um instrumento da sociedade para lidar com a loucura. Logo, ela reflete a mentalidade desta sociedade. A psiquiatria não é uma ciência pura nem neutra: é governada pela visão de mundo, mentalidade e ideologia da sociedade que a pratica e patrocina.

Psicologia, psicanálise e psiquiatria são técnicas incrustadas em nossa cultura e ligadas à estrutura social.

O fenômeno da loucura, para a sociedade dos sécs. XIX e XX, não poderia ter qualquer explicação social que ameaçasse seus padrões de comportamento. A sociedade burguesa valoriza as qualidades individualistas. Procura retirar da sociedade e do relacionamento humano a responsabilidade sobre a loucura. Não assume suas deficiências. Nega suas contradições. Nega que ela é o palco de relacionamentos muito ruins, produtores de sofrimento. Procura fazer crer que a loucura e todo o sofrimento mental vêm do corpo, por estragos hereditários ou acontecidos ao acaso. Faz o povo acreditar que a loucura nasce do corpo do indivíduo. Logo, os relacionamentos dentro da família, da escola e da sociedade não precisam ser mudados.

A teoria psiquiátrica do século XIX deveria ser compatível com a posição ideológica da sociedade da época. Precisava-se fabricar uma teoria científica que não contrariasse a mentalidade que interessava aos controladores da sociedade. Disto se encarregou o positivismo. Este sistema filosófico, idealizado por Augusto Comte, pressupõe que as teorias científicas, por serem certas, são fixas e definitivas. Elas se referem a fenômenos naturais, governados por leis objetivas e imutáveis. O positivismo força leis teóricas, construindo as teorias científicas de forma mecânica, simplista. Ele imagina as leis da psicologia como se seguissem o molde das leis da física ou da química.

É interessante notar que hoje voltam alguns dos desejos dos psiquiatras de nossos avós. Não se fala em taras hereditárias, mas se fala de erros bioquímicos hereditários. Não se fala em eugenia, mas certos behavioristas (seguidores da corrente psicológica comportamentalista) pretendem fazer um homem controlável e previsível. Não se fala em pureza da raça, mas se fala em neutralidade científica.

Um grande comércio foi desenvolvido. Uma forte propaganda dirigida aos médicos falsifica as propriedades e esconde as limitações das drogas. Adotadas pelo manicomialismo, passaram a ser usadas no mesmo sentido da camisa-de-força e dos quartinhos de contenção. Imobilizando os movimentos e amortecendo os sentimentos, as drogas vieram a preencher o vazio dos livros de terapêutica psiquiátrica.

Atualmente são fontes de renda para os laboratórios multinacionais e proporcionam um tratamento paliativo que desencoraja qualquer abordagem mais profunda da loucura. Ao capitalismo não interessa resolver o problema. Interessa ter lucros a partir dele. A terapêutica psiquiátrica, nos últimos vinte e cinco anos, tem sido governada principalmente pelas multinacionais farmacêuticas, fazendo dos psicotrópicos uma das mais seguras e rendosas indústrias.

Thomas Szasz é o mais famoso crítico da psiquiatria nos Estados Unidos. Seu livro O Mito da Doença Mental é um manifesto contra a visão naturalista, fisiológica, da doença mental. E um manifesto contra o abuso da medicina, contra a medicalização da vida. Para ele a doença mental não é doença verdadeira, não é falta de saúde. Ela seria um problema sociológico e moral, no qual o médico substitui o sacerdote, o conselheiro e o amigo, dentro de uma sociedade que não respeita liberdades civis. O internamento de pacientes psiquiátricos não é feito em benefício do doente, mas em benefício dos outros. E a sociedade, bem como a família do doente, que se sente ameaçada e importunada pelo paciente. A internação é para proteger a sociedade.

Assim, para Szasz, a psiquiatria opera como uma agência de controle social, mas disfarça este controle social sob o rótulo de tratamento. O maior exemplo disto, acha Szasz, é o caso da histeria, que ninguém pode afirmar que seja uma doença, mas seu cuidado é atribuído ao médico. Eie compara a loucura à bruxaria do fim da Idade Média. Mostra que as sociedades sempre precisaram de bodes expiatórios — judeus, comunistas, bruxas, loucos — para projetar sobre eles seus próprios fracassos e imperfeições. Como o louco é uma pessoa diferente, ele facilmente serve de bode expiatório. Isto lhe causa grandes sofrimentos. Também os homossexuais e os negros são bodes expiatórios. Tais pessoas são discriminadas e socialmente destruídas. Os psiquiatras têm servido mais para este fim, diz Szasz, do que para qualquer outro. A violência da sociedade vem disfarçada através da psiquiatria.

Erving Goffman, analisa a vida dentro das grandes instituições fechadas: os asilos, prisões, hospícios, internatos e quarteis. Chama a estas instituições onde se vive, dia e noite, sob regras e em grupo, de "instituições totais". Seu regime é fechado e administrado formalmente. Seu livro Asilos, já publicado em 1961, coloca em foco o mundo do internado nos hospícios. Sendo chamado pelos técnicos de neurótico, psicótico ou retardado, o paciente assume esta condição. A etiqueta de doente passa a fazer parte de sua vida. E a vida modifica-se em função dela. O paciente, cada yez mais, representa o papel de doente. Assume o papel de membro de uma instituição fechada e adapta sua vida a ela. Por fim, a pessoa passa a ser apenas aquilo que é dentro da instituição. Passa a ser apenas o papel que ela representa. Perde a identidade pessoal. Goffman estuda o dia-a-dia do hospital psiquiátrico e de suas cerimônias. Mostra o horror e a falta de lógica existente no interior dele.

Os livros da equipe de Basaglia mostram que os hospitais psiquiátricos não estão curando ninguém, exceto aqueles que já se curariam fora deles. Estes hospitais não são, então, lugares de tratamento e cura. São, principalmente, asilos, depósitos de pessoas rejeitadas. O tratamento psiquiátrico envolve muita conversa, envolve uma confiança que o paciente precisa desenvolver com o terapeuta. Não se faz boa psiquiatria em consultas de quinze minutos, como se o sofrimento psíquico fosse uma diarreia banal. Às vezes é preciso um envolvimento grande com o paciente, saindo com ele, acompanhando-o na construção de uma vida digna, em clima de companheirismo. Por isso, nas crises de desespero ou de delírio, o pessoal da Psiquiatria Democrática dá uma assistência intensiva à pessoa em sofrimento, ficando com ela o tempo todo, a menos que ela não queira.

Ora, se o sofrimento psíquico tem causas na sociedade onde se vive, tratar adequadamente deste sofrimento e tentar diminuí-lo torna-se um projeto capaz de contestar coisas da sociedade antiga. Pode exigir mudanças nos relacionamentos familiares, sociais e no modo como se encara o poder. Uma psiquiatria empenhada em entender a fundo o sofrimento das pessoas poderá provar que nosso modo de viver em sociedade contém muitas coisas ruins, coisas que dão sofrimento. Poderá dar pistas para mudarmos coisas da sociedade.

A psiquiatria alternativa não se resume na extinção dos hospícios nem na garantia de assistência para todos. Ela precisa visar à qualidade desta assistência. Cabe à psiquiatria ajudar na procura das necessidades perdidas do homem, das necessidades jamais colocadas. O homem precisa descobrir que suas necessidades e desejos são induzidos pela sociedade de consumo, inclusive. Precisa tomar consciência de suas necessidades reais, ultrapassando a alienação.

Só pode promover liberdade o profissional consciente de sua necessidade de ser livre. Só pode promover liberdade uma instituição crítica, não repressora. Tal liberdade poderá até terminar com a instituição, fazendo-a ultrapassar-se.


Fonte:
SERRANO, Alan Indio. O que é Psiquiatria Alternativa. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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