Alguns trechos do livro:
O termo "contracultura" foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram, não só nos Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa e, embora com menor intensidade e repercussão, na América Latina. Na verdade, é um termo adequado porque uma das características básicas do fenômeno é o fato de se opor, de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficializada pelas principais instituições das sociedades do Ocidente.
Contracultura é a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. (...). Obedece a instintos desclassificados nos quadros acadêmicos.
Acostumamo-nos, através da educação, a ver na cultura que herdamos de nossos pais e antepassados uma entidade intocável, definitiva, que se apresenta diante de nós como parte da própria essência da realidade - algo "natural" como o Sol ou a Lua, ou o resultado de uma evolução que se diria "biológica" porque inevitável.
É evidente, porém, que não é assim.
Cultura é um produto histórico, isto é, contingente, mais acidental do que necessário, uma criação arbitrária da liberdade.
Não há cultura, a rigor (...), mas culturas, no plural, criadas por diferentes homens em diferentes épocas, lugares e condições, tanto objetivas quanto subjetivas. Elas expressam não a realidade em si, mas diferentes maneiras de ver essa realidade e de interpretá-la. São diferentes leituras do mundo e por nenhum critério pretensamente objetivo podemos afirmar que uma seja mais válida - ou mais "objetiva", "verdadeira", "científica", etc. - do que outra.
A compreensão do fenômeno da contracultura depende da erradicação desse preconceito, introjetado em todos nós desde a infância: o de que nossa cultura particular e suas formas específicas e limitadas são, de alguma maneira, superiores, ou melhores, ou mais objetivas, etc. do que quaisquer outras, pretéritas ou a inventar.
Esta é uma ilusão tenaz, amparada por todas nossas instituições - da universidade à política -, e o primeiro ato indiscutivelmente positivo e genuinamente revolucionário da contracultura foi o de desmenti-la.
A contracultura foi certamente propiciada pelas próprias doenças de nossa cultura tradicional. Tais doenças condicionaram seu surgimento, como um antídoto, ou anticorpo, necessário à preservação de um mínimo de saúde existencial, que passou a ser socialmente exigido pelo próprio instinto de sobrevivência de nossa vida em comum.
Considerando-se "saudável", o doente não procura médico nem remédio - e atribui seu sofrimento a uma fatalidade absurda e incompreensível. Essa condição caracteriza nosso cotidiano.
A contracultura surgiu do confronto entre a cultura, reconhecida como doença, e a visão juvenil, cujo instinto natural é para a saúde. A audácia dessa visão não pode ser considerada mera precipitação ingênua, pois funda-se, antes, num desencanto radical - atingido por saturação, maturidade - com o mundo tal como conhecemos.
As vertentes que confluíram, de naturezas aparentemente diversas, mas sublinhadas pelo denominador comum da intenção libertária.
Tratava-se, de fato, de um movimento de contestação que colocava frontalmente em xeque a cultura oficial, prezada e defendida pelo Sistema, pelo Estabilishment. Diante desta cultura privilegiada e valorizada, a contracultura se encontrava efetivamente do outro lado das barricadas. A afirmação e a sobrevivência de uma parecia significar a negação e a morte da outra.
...um certo espírito, um certo modo de contestação... um tipo de crítica anárquica que, de certa maneira, rompe com as regras do jogo...
Descrente do futuro e desencantada com o presente — uma sociedade e uma cultura que, segundo o consenso da época, estavam simplesmente "doentes" —, o que tentava criar era um mundo alternativo, underground, situado nos interstícios daquele mundo desacreditado, ou no que se acreditava ser o outro lado de suas muralhas. Rompia-se com praticamente todos os hábitos consagrados de pensamento e comportamento da cultura dominante, realizando-se uma espécie de "crítica selvagem" a esta mesma cultura e sociedade ocidentais.
Não se tratava da revolta de uma elite que, embora privilegiada, visasse uma redistribuição da riqueza social e do poder em favor dos mais humildes. Nem de uma "revolta de despossuidos". Ao contrário. Era exatamente a juventude das camadas altas e médias dos grandes centros urbanos que, tendo pleno acesso aos privilégios da cultura dominante, por suas grandes possibilidades de entrada no sistema de ensino e no mercado de trabalho, rejeitava esta mesma cultura de dentro. E mais. Rejeitavam-se não apenas os valores estabelecidos mas, basicamente, a estrutura de pensamento que prevalecia nas sociedades ocidentais. Criticava-se e rejeitava-se, por exemplo, o predomínio da racionalidade científica, tentando-se redefinir a realidade através do desenvolvimento de formas sensoriais de percepção.
Mas como se caracteriza essa sociedade em que se constitui e com que se defronta este poder jovem? Como ela se apresenta aos olhos daqueles que vão desafiá-la? Suas marcas mais fortes parecem ser uma indústria altamente avançada, aliada a uma razoável afluência, aliança que se traduz numa pauta de consumo sempre renovada e num sistema essencialmente massificante. Trata-se, na verdade, de uma sociedade tecnocrática voltada para a busca ideal de um máximo de modernização, racionalização e planejamento, com privilégio dos aspectos técnico-racionais sobre os sociais e humanos, reforçando uma tendência crescente para a burocratização da vida social. Tudo isto, por sua vez, apoiado e referendado pelo dogma da ciência, ou melhor, pela crença absoluta na objetividade do conhecimento científico e na palavra do especialista, o intérprete autorizado do discurso da tecnologia, da produtividade e do progresso.
Neste sentido, a tecnocracia — esta forma social acima apontada — se afirma como um imperativo cultural incontestável e indiscutível à cuja dominação boa parte da população mundial do final do século XX se rende sem muitas vezes ter ao menos a mais leve consciência deste fato. Diante de um tal sistema, altamente repressivo e massificante, uma das características essenciais de toda a contestação da juventude vai ser a ênfase na afirmação da individualidade.
De ambos os lados do Atlântico sopravam também novos ventos, que evidenciavam a tentativa de renovação por parte do próprio pensamento teórico crítico, de esquerda, diante das novas contradições surgidas no período do pós-guerra e diante do tipo de organização e vida social que vinha se evidenciando naquelas sociedades industriais avançadas.
Não apenas nos Estados Unidos, mas em todos os lugares onde floresceu, a cultura jovem dos anos 60 foi extremamente sensível e simpática a toda e qualquer movimentação de grupos étnicos ou culturais que se vissem nessa posição de marginalidade ou exclusão diante das vantagens e promessas da sociedade ocidental.
Nas palavras de Luís Carlos Maciel, "a guitarra elétrica, em Jimmy Hendrix, não é apenas um novo som: é uma nova experiência existencial que exige, para que se estabeleça uma comunicação efetiva, uma alteração profunda na própria maneira de viver do ouvinte, nos próprios valores que norteiam seu comportamento e no seu próprio sistema nervoso".
Principalmente durante a segunda metade da década de 60, os grandes acontecimentos musicais da contracultura foram os festivais. Reunindo um número enorme de grupos, compositores e intérpretes — e, obviamente, um público gigantesco —, esses happenings musicais eram uma ocasião única para o encontro daqueles que, às vezes desesperadamente, tentavam criar um mundo novo que fugisse aos limites do Sistema.
No grande rito da contracultura, que o rock ajudava a encenar, um grupo tinha um papel absolutamente fundamental: eram os hippies. Com seu mundo psicodélico, seus cabelos agressivamente compridos, suas roupas coloridas e exóticas, enfim, com seu ar freak (estranho, extravagante), eles começaram a encher as ruas dos Estados Unidos, ou melhor, da Califórnia, já desde os primeiros anos da década de 60. E não é preciso dizer que, de lá, eles começaram a se espalhar pelo mundo inteiro, numa viagem longa e sinuosa. Era o flowerpower que começava a ganhar seu lugar ao sol, com o aval de nomes nada desprezíveis como Andy Warhol, Ginsberg, Thimothy Leary, Alan Watts, Mc-Luhan, Marcuse e tantos outros.
Referência:
PEREIRA, Carlos Alberto. O que é Contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983.