Para uma genealogia da psicologia

A psicologia ocupa uma posição enorme responsabilidade em nosso tempo, pois atua diretamente sobre a subjetividade, a mente, os afetos e a relação da pessoa consigo mesma. Além disso, é reconhecida como um saber verdadeiro e válido sobre o ser humano, compondo o campo de estudos sobre a saúde mental. Esse saber envolve práticas que atuam diretamente sobre os modos de vida e maneiras de como lidar com o sofrimento emocional, inclusive como de se relacionar consigo mesmo, com os outros e com os espaços.

Enquanto ciência, a psicologia produz um saber sobre o ser humano que classifica e determina alguns modos de vida entendidos como “saudáveis” em detrimento de outros, entendidos como “patológicos”. A princípio, essas determinações são apresentadas como resultantes de pesquisas científicas e "neutras", como algo natural e universal - que serve para todas as pessoas em qualquer tempo. Porém, esses saberes foram constituídos historicamente, e estão recheados de interesses ocultos.

A grande maioria dos profissionais em psicologia não questionam os fundamentos de seus saberes e práticas, supondo a psicologia ser uma atividade "neutra" em favor da "saúde". Não colocam em questão o paradigma de saúde de suas teorias e práticas, nem a quais pessoas esse paradigma serve. Pretendo aqui evidenciar a atual noção de psicologia como resultante de diversas forças e interesses, colocando em questão os fundamentos dos saberes e as práticas da psicologia científica.

Entre as questões que coloco estão: como os saberes e as práticas em psicologia foram estabelecidos? Sob quais condições e interesses? Quais os contextos históricos, sociais, econômicos, políticos e subjetivos que possibilitaram a emergência da psicologia científica? Quais os valores morais e sociais que orientaram os saberes e as práticas em psicologia? A quem serve o modelo atual de psicologia? Quais as implicações subjetivas e sociais dos diagnósticos e das intervenções em psicologia?

Um olhar genealógico sobre a psicologia entende que esta ciência se constituiu por forças externas à própria psicologia ou à ciência, que estão na cultura, nos valores, na moralidade, e em outros saberes, como a filosofia, medicina e fisiologia. Partindo de uma perspectiva crítica, busca-se evidenciar os interesses que possibilitaram a prevalência de uma tendência sobre outras, entendendo a psicologia como uma criação discursiva de saberes e práticas, que tem assumido desde o final do século XIX uma hegemonia no discurso sobre o ser humano, sobretudo sobre o comportamento e as emoções.

Entende-se aqui a psicologia como uma criação humana, que emergiu num dado momento histórico, por certos grupos de pessoas e com interesses específicos. Enquanto saber-poder, a psicologia produz subjetividades a partir de suas teorias e intervenções, tendo um papel normativo, estabelecendo um modelo de pessoa "saudável", e consequentemente "patologizando" as diferenças, onde o tratamento possui um papel de ajustamento a um modelo de vida específico, entendido como "saudável" e "adequada", com valores recheados de interesses políticos e morais não assumidos.

"A psicopatologia do século XIX (e talvez ainda a nossa) acredita situar-se e tomar suas medidas com referência num 'homo natura' ou num homem normal considerado como um dado anterior a toda experiência da doença. Na verdade, esse homem normal é uma criação."
(Michel Foucault, em 'História da Loucura')

A partir desses questionamentos podemos traçar alguns dos elementos fundantes na psicologia científica, sobretudo o ajustamento e a normalização, sustentadas por saberes e práticas que emergiram desde o início da Idade Moderna (século XVI em diante), entre eles o mecanicismo, a ciência moderna, o materialismo, o empirismo, e outros que aparecem no período contemporâneo (século XIX em diante), como o positivismo, a fisiologia, o poder disciplinar e os interesses de grupos economicamente dominantes.

O mecanicismo é uma perspectiva determinista, que entende as pessoas como seres mecânicos, passíveis de entendimento exato a partir das leis da física e da matemática. Esse entendimento emergiu no século XVII, pautado na ciência enquanto prática de observação, experimentação e medição, decompondo a pessoa em partes para analisar sua complexidade a partir de sua fragmentação, visando observar e registrar sua regularidade, onde o corpo era entendido como uma máquina sujeita às leis mecânicas.

"Por mecanicista, entendo simplesmente que o homem continua a ser descrito como se fosse alguma espécie de máquina complicada. Assim, ele é visto como algo passivo e inerte, só acionado pela ação de alguma força, externa ou interna, exercida sobre ele. Em princípio, seu comportamento é totalmente explicado em termos de 'causas' sobre as quais não tem controle algum."
(Nick Heather, em 'Perspectivas Radicais em Psicologia')

Ainda no século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) estabeleceu uma separação conceitual entre mente e corpo, entendendo que a mente controlava corpo. Também elaborou um método de produção de conhecimento científico, instituindo o sujeito pensante. John Locke (1632-1704), entendia que a mente se comportava tal como as leis da física, como uma máquina, que era passível de ser estudada explicada, entendimento também defendido por James Mill (1773-1836).

O empirismo e o materialismo se tornam duas tendências de entendimento sobre o funcionamento humano que se tornam influentes nos séculos posteriores, entendendo que todas as coisas poderiam ser descritas em termos físicos e explicadas por meio das propriedades físicas da matéria. Esses saberes culminaram para o positivismo,  um sistema baseado exclusivamente em coisas observáveis, visando descrever leis e regularidades do funcionamento humano.

No século XIX, a fisiologia estava aprimorando seus estudos sobre o cérebro, o fisiologista francês Pierre Flourens (1794-1867) separou sistematicamente o cérebro em partes e observou suas consequências, entendendo que o cérebro controla os processos mentais superiores, o mesencéfalo controla os reflexos visuais e auditivos e o cerebelo controla a coordenação, pautado numa concepção mecanicista do funcionamento do corpo e do cérebro como controlador.

"Para um behaviorista watsoniano, a natureza humana era vista como um organismo vivo, que funciona de forma mecânica. A essência do seu funcionamento são as ligações entre os receptores (órgãos do sentido); os condutores (neurônios); órgãos do comando (cérebro e coluna vertebral); agentes (músculos); órgãos de alimentação (estômago); órgãos de controle (glândulas)."
(May Ferreira, em 'Concepções de Subjetividade em Psicologia')

Suas experiências influenciaram um grupo de cientistas que entendiam que a mente poderia ser explicada a partir por meio de experiências em laboratório e medição. Entre esses cientistas estavam Ernst Weber, Gustav Fechner e Hermann Helmholtz, essa tendência de realizar pesquisas e observações experimentais estimularam o médico e filósofo alemão Wilhelm Wundt (1832-1920), na criação do primeiro laboratório de psicologia na Alemanha, em 1879.

Neste momento, a psicologia começa a despontar como uma ciência independente, onde se delimita seu objeto de estudo, a experiência consciente imediata e seu método experimental com base no método das ciências naturais, de modo a alcançar um estatuto de cientificidade da época, nos moldes do positivismo. Porém, essa psicologia não era "neutra", mas influenciada por distintos saberes já mencionados, como o mecanicismo, o empirismo, e toda uma nova condição econômica, o liberalismo.

O século XIX é um período muito significativo para o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), um momento de expansão de novas mecanismos de poder que atuam diretamente sobre os corpos das pessoas - o poder disciplinar, um conjunto de técnicas que visam um controle das atividades, disposições, movimentos e gestos das pessoas, por meio de regulamentos de horários, atividades e espaços. Esse controle visava a organização de múltiplos grupos de pessoas com o crescimento das cidades.

"A psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola, como a entrevista médica ou psiquiátrica é encarregada de retificar os efeitos da disciplina de trabalho. Mas não devemos nos enganar: essas técnicas apenas mandam os indivíduos de uma instância disciplinar a outra, e reproduzem, de uma forma concentrada, ou formalizada, o esquema de poder saber próprio a toda disciplina."
(Michel Foucault, em 'Vigiar e Punir')

A mudança do modelo econômico para o liberalismo, juntamente com o surgimento das fábricas necessitaram de uma força de trabalho disciplinada e organizada. Segundo Foucault, as práticas psicológicas do início do século XX visavam lidar com os problemas de desajustamento nas áreas da educação e do trabalho. A psicologia passa a ser utilizada como um dispositivo do poder disciplinar, para ajustar e adaptar as pessoas aos modelos da escola e do trabalho, enunciando saberes que sustentam suas práticas a partir de técnicas, exames e testes psicológicos.

O psicólogo do trabalho se dedicava a tornar o empregado mais eficiente, o psicólogo escolar visava tornar os alunos mais obedientes, tornando as práticas educativas e do trabalho mais eficientes. Foi assim que os psicólogos passaram a assumir uma posição de agentes de disciplinarização e normalização, autorizados pelo saber-poder e legitimados pela ciência, partindo de um entendimento mecânico do funcionamento humano, visando conduzi-lo a um modo de vida específico, tornando útil e dócil.

Os saberes e técnicas que fundamentam e operacionalizam as práticas disciplinares são elaborados por grupos economicamente dominantes, a partir de seus interesses. Assim, a psicologia postulou padrões de "normalidade" e de "saúde psíquica" a partir de modelos de vida que contribuem para as elites econômicas, propondo modelos de conduta que interessa manter, e propondo métodos de intervenção e assistência aos que fogem desse padrão, patologizando aqueles que diferem da norma.

"É interessante notar que nossas construções ideais de saúde e de normalidade em geral abrigam valores morais da cultura dominante da sociedade; por serem dominantes, instalaram-se na ciência e na profissão como referência para o comportamento e as formas de ser dos sujeitos. O problema maior está em que não temos assumido essa adesão. Temos apontado esses valores e referências como naturais do homem; como universais. Desta forma, trabalhamos para manter os valores dominantes e para justificá-los como a única possibilidade de estar no mundo. O diferente passa a ser combatido; visto como crise, como desajuste ou desequilíbrio; passa a ser "tratado", com a finalidade do retorno à condição saudável e natural do homem. A Psicologia torna-se assim uma profissão conservadora que trabalha para impedir o surgimento do novo."
(Ana Bock, em ‘Psicologia Sócio-Histórica’)

Assim, o discurso psicológico passou a naturalizar um modelo de saúde e de vida a partir de práticas de normalização, ajustamento e adaptação, fortemente condicionado por um entendimento mecanicista do funcionamento da mente, dos comportamentos e das emoções, atuando em favor de um modelo econômico neoliberal, utilizando seu saber como forma de dominação e controle, deixando de reconhecer as condições sociais e históricas dos sofrimentos, visando prioritariamente ao ajustamento.

Tendo contato com essa diversidade de elementos que constituíram a psicologia enquanto ciência no final do século XIX, fica claro que seu intuito inicial é muito mais moral e político, visando organizar e adequar as pessoas a uma norma, corrigindo os desviantes e praticando uma ortopedia da psique, práticas ainda presentes na psicologia atual, que se ocultam em forma de uma ciência “neutra”.

Essa breve genealogia dos saberes e práticas da psicologia tem como intuito problematizar suas implicações, repensando seus fundamentos e colocando em questão seu discurso as "verdades" que são elaboradas sobre os "sujeitos", possibilitando assim retomar sua condição de "não saber", levando em consideração as diferenciações e os saberes marginais, para que seja possível um novo pensar e novos fazeres em psicologia.

Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
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FIGUEIREDO; SANTI. Psicologia, uma (nova) introdução: uma visão histórica da psicologia como ciência. São Paulo: Educ, 2004.
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
GUARESCHI; HÜNING; FERREIRA [et al.]. Foucault e a Psicologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.
HEATHER, Nick. Perspectivas Radicais em Psicologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
SCHULTZ; SCHULTZ. História da Psicologia Moderna. São Paulo: Cultrix, 1992.

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