Relações de poder na cultura

O intuito deste breve texto é refletir sobre o conceito de cultura e as relações de poder estabelecidas por certos grupos sociais sobre outros, tratando a questão sobre o que nos faz atribuir maior valor a uma cultura específica, em detrimento de outras, ou seja, por que certas manifestações culturais são apontadas como superiores que outras, quem estabelece essa avaliação?

A palavra "cultura" é de origem latina, vem do verbo colere, que significa cultivar. O termo "cultura" tem um sentido muito mais amplo, envolvendo educação (estudo, formação escolar), manifestações artísticas (teatro, música, pintura, escultura), uma época (período histórico), uma tradição (festas, cerimônias, lendas e crenças), um povo, vestimenta, culinária, idioma, etc.

"Considera-se como cultura todas as maneiras de existência humana."
(José dos Santos, em 'O que é cultura')

A tendência positivista, que passa a se tornar mote na ciência ocidental a partir do século XIX, visou hierarquizar as culturas humanas, tanto as existentes quanto as extintas, sob o ponto de vista do desenvolvimento de cada uma, partindo do ideal da civilização europeia da época. Assim, estabeleceu um julgamento de valor sobre as manfestações culturais a partir do olhar eurocêntrico e tecnológico.

"Sociedades antes isoladas foram subjulgadas e incorporadas ao âmbito de influência europeia."
(José dos Santos, em 'O que é cultura')

A antropologia cultural entende que quando vamos estudar uma cultura é preciso que se compreenda o valor que esta cultura tem para si mesma, e não apenas em comparação com outras culturas, isso significa que não há como comparar uma forma cultural com outra, pois os critérios de comparação parte da culutra em que se está inserido. Nesse sentido, é preciso avaliar a partir da própria cultura suas manifestações.

"Lendas ou crenças, festas ou jogos, costumes ou tradições - esses fenômenos não dizem nada por si mesmos, eles apenas dizem algo enquanto parte de uma cultura, a qual não pode ser entendida sem referência à realidade social que faz parte, à história de sua sociedade."
(José dos Santos, em 'O que é cultura')

O estudo e avaliação das diferentes formas culturais varia de acordo com a cultura que se está inserido e pela qual se efetua a observação e interpretações. Os critérios usados para se classificar uma cultura são também culturais. Uma cultura que se legitima como superior expressa sua dominação por meio da filosofia, das ciências, dos saberes e de suas instituições. É assim que o conhecimento que se nomeia "erudito" trata os outros como atrasados e inferiores.

É assim que, de acordo com Roberto DaMatta, uma cultura se coloca como se fosse mais refinada, adotando comportamentos específicos como superiores, como escutar música clássica, apreciar vinhos ou falar outros idiomas. Ao mesmo tempo, a pessoa que não possui tais comportamentos passa a ser vista por esta cultura como inferior ou atrasada.

"Para a compreensão dos processos culturais, “devemos ler a nossa cultura culturalmente, sem reduzi-la a alguns traços tomados como negativos porque eram comparados com a tal cultura que se tomava como superior ou como mais avançada."
(Roberto DaMatta, em 'A dualidade do conceito de cultura')

Herdamos uma relação de poder historicamente constituída culturalmente, onde fomos ensinados a consumir e reproduzir um tipo de cultura, sem reconhecer que também a criamos. Somos acostumados a estabelecer uma relação passiva e inferiorizante com a cultura, onde apenas reproduzimos valores que são transmitidos como corretos e bons, não avaliando o quanto realmente nos são bons ou ruins.

O intuito aqui é destacar que há relações desiguais na apropriação e uso das manifestações culturais, o que reflete uma realidade desigual entre as distintas expressões cultruais. Os movimentos pelo direito ao acesso e a possibilidade de se produzir e veicular cultura se colocam contra as relações de dominação entre os grupos de pessoas, são lutas para a transformação da realidade na qual estamos inseridos.

As variações nos modos de ser, agir, sentir e se colocar no mundo não são gratuitos, eles fazem sentido histórico para os agrupamentos humanos que nelas atuam, se relacionando com as condições materiais da existência. O estudo e reflexão sobre a cultura pode contribuir no combate aos preconceitos, possibilitando o entendimento das diferenças, em favor do respeito e da dignidade nas relações humanas.

De acordo com Paulo Freire (1981), o ponto de partida para uma análise da conscientização, "deve ser uma compreensão dos seres humanos como existentes no mundo e com o mundo", onde a condição básica para a conscientização é que seu agente seja um sujeito consciente. As características de uma cultura não são absolutas, mas históricas e sujeitas à transformação.

"Só se pode propriamente respeitar a diversidade cultural se se entender a inserção das culturas particulares na história mundial. (...) Não há superioridade ou inferioridade de culturas ou traços culturais de modo absoluto, não há nenhuma lei natural que diga que as características de uma cultura a façam superior a outras."
(José dos Santos, em 'O que é cultura')

Assim, entende-se a cultura como um processo humano em constante mutação, que não se move apenas pelo que existe, mas também pelas possibilidades que podem se tornar a ser.

Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
DAMATTA, Roberto. A dualidade do conceito de cultura. Publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, 20/05/1999.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.

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