Nietzsche e suas críticas à metafísica

Nietzsche Vector Art, Cesar Jaffar, 2020

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche fez um diagnóstico da situação do ser humano na modernidade, colocando em questão o otimismo diante do racionalismo e do iluminismo dos séculos XVII e XVIII, que acreditavam que estaríamos caminhando para uma sociedade mais justa, livre, sem violência, opressão e exploração, por meio dos avanços das ciências e da técnica, juntamente com a razão.

Com o avanço e o desenvolvimento do conhecimento científico na modernidade houve uma dessacralização e uma desdivinização da natureza, juntamente com o uso mais especializado e técnico da razão, que nos levou à perda de valores absolutos e referenciais para a vida. Essa condição de perda de referenciais poderia possibilitar outros valores e abrir novos horizontes para a experiência humana.

Porém, com a ausência dos referenciais divinos e absolutos, a ciência passou a se estabelecer como uma nova referência valorativa, inclusive totalitária, colocando ideais transcendentes como mais importantes que a experiência imanente, valorizando muito mais a razão e a ordem do que a concretude das vivências, colocando alguns valores superiores à própria vida, é neste aspecto que Nietzsche elabora sua critica.

"Toda a filosofia de Nietzsche é uma filosofia do valor, no sentido de uma crítica radical dos valores dominantes na sociedade moderna, e uma proposta de transformação do próprio princípio de avaliação de onde derivam os valores."
(Roberto Machado, em ‘Nietzsche e a verdade’)

A metafísica é um campo da filosofia que se dedica ao estudo das essências e dos fundamentos das coisas, entendendo que estas podem ser alcançadas por meio da razão, usada como um meio para entender e explicar as coisas que não estão disponíveis para serem acessadas por meio de nossas experiências sensíveis, estabelecendo assim as noções morais, de verdade, de justiça, inclusive atribuindo valores.

Trata-se de uma perspectiva prioritariamente intelectual e reflexiva, que não se baseia na experiência sensível ou sensorial, e que visa alcançar os conceitos puros, elaborados unicamente por meio do exercício da razão, onde cada conceito se sustenta por sua relação com outros conceitos, formando assim um sistema de ideias interligadas.

Uma das primeiras e fundamentais tarefas da filosofia de Nietzsche (1844-1900) consistiu em refutar e romper com a metafísica, especialmente a platônica, que realizou uma separação entre o mundo sensível e o teórico, supervalorizando a perspectiva teórica e desprezando o mundo sentido. O filósofo alemão propôs uma revisão sobre essa avaliação de Platão (428-347 a.C.).

"De acordo com Nietzsche, todos os valores supremos postulados pelas principais tradições do pensamento em todo o decorrer da história ocidental apoiaram-se em um tipo de divinação da natureza. A religião, a filosofia e até mesmo a ciência apoiaram-se em uma visão metafísica do mundo."
(Ashley Woodward, em ‘Nietzscheanismo’)

A filosofia de Platão é um modelo de metafísica, que propõe uma concepção de mundo e de realidade dualista, separando o "mundo verdadeiro", considerado o plano das essências e das ideias, e o mundo das experiências, considerado o "mundo falso" das aparências, acessível aos sentidos. O mundo das ideias pressupõe a existência de essências e formas "puras", que constituem todas as coisas.

Essas essências teriam se originado a partir da ideia do "Bem" ou de "Deus", sendo tomadas como causa primeira e produtora de todas as ideias. São eternas, atemporais e imutáveis, pois não estão submetidas às leis do espaço e do tempo, entendidas como "realidade inteligível". Porém, essas ideias não são acessíveis aos nossos órgãos dos sentidos, da "realidade aparente" de nossa experiência cotidiana.

Platão entendia que nosso corpo era conduzido ao erro e ao engano através dos sentidos, que nos levam às aparências ao invés da contemplação das formas e das essências. Para Nietzsche, o platonismo dividiu o mundo em dois, desqualificando o mundo que experienciamos, apresentando a ideia de um mundo verdadeiro, que está num plano metafísico que não temos acesso por meio dos sentidos.

Nietzsche se opõe a essa divisão entre "mundo aparente" e "mundo verdadeiro", para o filósofo não haveriam dois mundos, um sentido e experienciado e outro verdadeiro. Segundo ele, essa ideia de um "mundo verdadeiro" das ideias e das essências é fruto de uma vontade de verdade, um desejo de se estabelecer uma distinção entre o "verdadeiro" e o "falso", uma vontade fraca que coloca nossas experiências como falsas e prioriza um saber que está além dessas experiências.

"O mundo ‘aparente’ é o único: o ‘mundo verdadeiro’ é apenas um acréscimo mentiroso."
(Nietzsche, em ‘Crepúsculo dos ídolos’)

Segundo a avaliação de Nietzsche, essa suposição de um mundo teórico das ideias não se trata de um conhecimento "verdadeiro", mas de uma necessidade da crença na existência da verdade. Mais especificamente, na crença da verdade como algo que corresponde a outro plano, o das ideias e essências, que está fora de nossas experiências sensíveis e aparentes.

Esta apreciação, além de negar o mundo que experienciamos, também apresenta outro mundo como "verdadeiro" e "superior", que está num plano inatingível por meio dos sentidos. Trata-se de uma maneira de deslegitimar e inferiorizar nossa experiência sensível. Constatando isso, Nietzsche propõe uma inversão ao Platonismo, reconhecendo que os saberes são movidos por interesses e impulsos. 

"Para Nietzsche, todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e condicionamentos subjetivos, ideológicos; o conhecimento resulta da projeção de nossos impulsos e anseios, razão pela qual Nietzsche o considera sempre determinado por uma certa perspectiva, seja individual, seja socioculturalmente determinada."
(Oswaldo Giacoia, em ‘Nietzsche’)


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos, ou Como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.
WOODWARD, Ashley. Nietzscheanismo. Petrópolis: Vozes, 2017.

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