O livro 'Sociedade Paliativa: a dor hoje', escrito pelo filósofo Byung-Chul Han, comenta sobre a sociedade do "curtir", que evita a dor a todo custo, transformando tudo em mania de curtição. O curtir se tornou o analgésico da vida, não está presente apenas nas redes sociais, mas em todas as relações.
Nas sociedades atuais a vida tem de ser "instagramável", com caras e bocas, modelos e manequins, cultivando o aparentar-se "feliz" a todo momento, buscando evitar e ocultar a todo custo os conflitos, as contradições, as dores e os sofrimentos. Segundo o autor, falta a esta sociedade a possibilidade da catarse.
Fragmentos do livro:
Hoje impera por todo lugar uma algofobia, uma angústia generalizada diante da dor. Também a tolerância à dor diminui rapidamente. A algofobia tem por consequência uma anestesia permanente. Toda condição dolorosa é evitada.
Vivemos em uma sociedade da positividade, que busca se desonerar de toda forma de negatividade. A dor é a negatividade pura e simplesmente. Também a psicologia segue essa mudança de paradigma e passa, da psicologia negativa como “psicologia do sofrimento”, para a “psicologia positiva”, que se ocupa com o bem-estar, a felicidade e o otimismo. Pensamentos negativos devem ser evitados. Eles devem ser substituídos imediatamente por pensamentos positivos. A psicologia positiva submete a própria dor a uma lógica do desempenho. A ideologia neoliberal da resiliência transforma experiências traumáticas em catalisadores para o aumento do desempenho. Fala-se até mesmo de crescimento pós traumático. O treino de resiliência como treino de resistência espiritual tem de formar, a partir do ser humano, um sujeito de desempenho permanentemente feliz, o mais insensível à dor possível.
A sociedade paliativa coincide com a sociedade do desempenho. A dor é vista como um sinal de fraqueza. Ela é algo que deve ser ocultado ou ser eliminado por meio da otimização. Ela não é compatível com o desempenho.
A dor é o rasgo por meio do qual o inteiramente outro tem entrada. Justamente a negatividade do inteiramente outro torna a arte capaz de uma contranarrativa frente à ordem dominante.
Também a vida que recusa toda dor é uma vida coisificada. Só o “ser-tocado pelo outro” mantém a vida viva. Caso contrário, ela permanece presa no inferno do igual.
Na sociedade do desempenho neoliberal, negatividades como mandatos, proibições ou punições dão lugar a positividades como motivação, auto-otimização ou autorrealização. Espaços disciplinares são substituídos por zonas de bem-estar.
Seja feliz é a nova fórmula da dominação.
Automotivação e auto-otimização fazem o dispositivo de felicidade neoliberal muito eficiente, pois a dominação se exerce sem nenhum grande esforço. O submetido nem sequer tem consciência de sua submissão. Ele se supõe livre. Sem qualquer coação estranha, ele explora a si mesmo, crente de que, desse modo, ele se concretiza. A liberdade não é reprimida, mas explorada. Seja livre produz uma coação que é mais dominante do que seja obediente.
No regime neoliberal, também o poder toma uma forma positiva. Ele se torna smart. Em oposição ao poder disciplinar repressivo, o poder smart não provoca dor. O poder é inteiramente desacoplado da dor. Ele se exerce sem qualquer repressão. A submissão se realiza com auto-otimização e autorrealização. O poder smart opera sedutiva e permissivamente. Uma vez que ele se faz passar por liberdade, ele é mais invisível do que o poder disciplinar repressivo. Também a vigilância adquire uma forma smart. Somos permanentemente requeridos a comunicar nossas carências, desejos e preferências e a narrar a nossa vida.
O dispositivo de felicidade neoliberal nos distrai do sistema de dominação existente ao nos obrigar apenas à introspecção da alma. Ele cuida para que cada um se ocupe apenas ainda consigo mesmo, com a sua própria psyché, em vez de interrogar criticamente as relações sociais. O sofrimento pelo qual a sociedade seria responsável é privatizado e psicologizado. Devem se melhorar não as condições sociais, mas sim as da alma. A demanda pela otimização da alma, que, na realidade, obriga a uma adequação às relações de dominação, oculta misérias sociais.
Analgésicos, prescritos em massa, ocultam relações sociais que levam à dor. A medicalização e a farmacologização exclusiva da dor impedem que ela se torne fala, sim, crítica. Elas tiram da dor o caráter objetivo, o caráter social.
Não revolucionários, mas treinadores de motivação tomam o palco, e cuidam para que não surja nenhum descontentamento, sim, nenhuma raiva.
O dispositivo de felicidade individualiza o ser humano e leva à despolitização e à dessolidarização da sociedade. Cada um tem de cuidar da própria felicidade. Ela se torna um assunto privado. Também o sofrimento é interpretado como resultado do próprio fracasso. Assim há, em vez de revolução, depressão. Enquanto buscamos curar nossa própria alma, perdemos de vista os contextos sociais que levam a rejeições sociais.
A sociedade paliativa despolitiza a dor ao medicalizá-la e privatizá-la. É oprimida e reprimida, assim, também a dimensão social da dor.
A sociedade paliativa é uma sociedade da positividade.
A negatividade do inimigo, que atua imunologicamente, não faz parte da constituição da sociedade do desempenho neoliberal. Guerreia-se aqui, antes de tudo, consigo mesmo. A exploração pelo outro dá lugar à autoexploração.
A ausência de sentido da dor aponta, antes, para o fato de que a nossa vida, reduzida a um processo biológico, é ela mesma esvaziada de sentido.
Mesmo com um grande arsenal de analgésicos, as dores não podem ser vencidas.
A violência também é o excesso de positividade que se manifesta como hiperdesempenho, hipercomunicação e hiperestimulação. A violência da positividade leva a dores de sobrecarga.
O sujeito de desempenho comete violência consigo próprio. Ele explora a si mesmo voluntariamente, até que ele desmorone. O servo tira o chicote da mão do senhor e chicoteia a si próprio para se tornar senhor, sim, para ser livre. O sujeito do desempenho está em guerra consigo mesmo. As pressões internas que surgem aí o derrubam em depressão. Elas também causam dores crônicas.
Dor é vínculo. Quem recusa todo estado doloroso é incapaz de vínculos. Vínculos intensivos que poderiam doer são, hoje, evitados. Tudo se desenrola em uma zona de conforto paliativa.
A anestesia reprime a estética da dor. Na sociedade paliativa, desaprendemos inteiramente como fazer a dor narrável, sim, cantável, como verbalizá-la, como transportá-la para uma narração, como cobri-la, sim, enganá-la com a bela aparência. A dor está, hoje, inteiramente separada da fantasia estética. Ela é desverbalizada e tornada em um assunto de técnica médica. Analgésicos antecedem à narrativa, à fantasia, e a fazem adormecer. A anestesia permanente prescrita [pela nossa sociedade] leva a um embotamento. A dor é detida antes que ela possa colocar uma narrativa em movimento. Na sociedade paliativa, ela não é mais nenhum fluxo navegável, nenhum fluxo narrativo que leva o ser humano ao mar, mas sim um beco sem saída.
A comunicação atinge a sua maior velocidade lá, onde o igual encontra o igual. O like a acelera. A dor, em contrapartida, atua contra ela. A dor tem uma inclinação a calar, que, porém, permite que algo inteiramente outro aconteça.
Hoje, não estamos dispostos a nos expor à dor. A dor, entretanto, é uma parteira do novo, uma parteira do inteiramente outro. A negatividade da dor interrompe o igual. Na sociedade paliativa como inferno do igual, nenhuma fala da dor, nenhuma poética da dor é possível. Ela permite apenas a prosa do bem-estar, a saber, a escrita à luz do sol.