Etnopsiquiatria: uma perspectiva despsicologizante

Museu Nacional de Etnologia, foto por raneko, 2007.

Etnopsiquiatria é uma perspectiva clínica que busca conhecer distintos modelos terapêuticos, sejam estes "científicos" ou específicos de uma comunidade étnica, religiosa ou social, sem nenhum tipo de hierarquização, visando compreender seus paradigmas e noções próprias de saúde e doença, entendendo que cada grupo seleciona modos de vida entendidos por "adequados" ou "inadequados", que possuem valor e sentido para esses grupos.

Coloca-se em questão os fundamentos da psiquiatria moderna, da psicologia institucionalizada e da psicanálise, a partir das distintas realidades culturais, pois não há como utilizar os mesmos valores para grupos culturais e etnias distintas. Deste modo, nos convida a um deslocamento de olhar, de modo a sair um pouco das noções que constituem nossos valores e saberes, para observar outros valores e perspectivas distintas.

A etnopsiquiatria entende que as coletividades humanas elaboram seus próprios modelos de normalidade e de loucura, e que estas variam para cada agrupamento humano. Conforme o fundador da Etnopsiquiatria, George Devereux (1908-1985), cada sociedade desenvolve noções específicas sobre como deve ser o modo de agir, pensar e sentir dos "loucos" e dos "normais". Assim, a loucura não é entendida como uma questão estritamente médica ou biológica, mas uma apreciação cultural.

"Uma outra perspectiva que também procura abordar as 'doenças mentais' com referência a grupos étnicos ou culturais nos é oferecida pela Etnopsiquiatria. Uma das teses que procura demonstrar é a seguinte: as coletividades humanas elaboram seus próprios modelos de loucura."
(Frayze-Pereira, em 'O que é Loucura')

Se partimos da perspectiva da psiquiatria moderna, os devaneios, os transes e os estados de êxtase são percebidos como estados patológicos. Mas, quando observamos essas experiências a partir de culturas distintas e antigas, seria legítimo conceber tais comportamentos como "doença mental" ou "transtorno"? Um índio no Brasil, antes da chegada dos portugueses poderia ter "burnout"? Um gladiador da Roma Antiga, poderia sofrer de "depressão"? Um escravo na Grécia Arcaica, poderia ter "ansiedade"?

Quando tomamos como referência sociedades antigas ou culturas distintas, vemos que as categorias psiquiátricas, e o que se entende por “normal” e “patológico” não são suficientes para dar conta das enfermidades. Há que se levar em conta outras questões, como as crenças, os valores da comunidade, os saberes cotidianos, os ideais míticos, o misticismo, o sobrenatural, enfim, toda uma composição de sua percepção de mundo que se difere da nossa.

etnologia é uma ciência que estuda e analisa os fatos e documentos de diferentes culturas e civilizações, buscando conhecer e identificar as diferentes características de qualquer etnia, considerada um agrupamento humano, povo ou grupo social. O etnólogo observa as diferenças entre as sociedades em suas diversas características, percebendo o que esse povo diz sobre si mesmo, e o modo como identifica seus participantes.

Temos a tendência de encaixar os outros em nossas perspectivas, mas não percebemos que nossas apreciações são válidas apenas para nosso tempo e espaço, e que as categorias de "certo" e "errado", "louco" e "sadio" são arbitrárias e se transformam com o tempo. A etnologia possibilita alargar nossa compreensão de homem e mundo, sobre os outros e nós mesmos, dando importância às singularidades e diferenças.

Os profissionais das ciências humanas, entre eles os psicólogos, psiquiatras, médicos, assistentes sociais, educadores e antropólogos, afirmam agir em nome da ciência de sua área, porém muitas vezes utilizam seus saberes em favor de uma ideologia ou de uma moral específica. Essa moral e essa ideologia operam de maneira destrutiva para com as pessoas que vivenciam outras perspectivas e valores, submetendo estas a um processo de normalização.

Na abordagem etnopsiquiátrica, não é o profissional que determina o paciente, pois entende o paciente em posição de conhecedor sobre si mesmo. Os etnopsiquiatras preferem acreditar no que os pacientes dizem ao invés de diminuir seus pontos de vista, suas queixas ou seu sofrimento. Assim, não reduzem o sofrimento a um simples pedido mascarado, a um problema edipiano ou a um conflito da infância, mas buscam com a pessoa o seu percurso terapêutico, encontrando seus próprios sentidos.

Entende que para cada povo há um dispositivo clínico e de pesquisa, se abrindo a novos caminhos de investigação. O atendimento direcionado a imigrantes, descendentes de povos originários ou refugiados visa acolher suas perspectivas de vida e de mundo, para partir de seus significados e paradigmas. As consultas habituais são entendidas como "consulta de investigação", que exigem pesquisas e abertura para novos entendimentos que fogem das noções habituais.

"A etnopsiquiatria, assim encarada, procura analisar as maneiras com que outras sociedades, que não a nossa, apreendem a doença mental, procedem a seu tratamento e interpretam suas próprias concepções etiológicas e terapêuticas."
(Françoise Laplatine, em 'Aprender Etnopsiquiatria')

A abordagem etnopsiquiátrica retoma a condição contextual na psicopatologia individual. Ao invés de buscar homogeneizar as características humanas, busca-se dar vazão para a heterogeneidade, de suas diferenças e distinções, olhando e lidando com aqueles que vivem fora deste mundo globalizado e normalizado, aqueles que ficam sempre fora da história oficial, aqueles vistos como "inadaptados" ou "fracassados", seja por valores religiosos, econômicos, sociais ou culturais.

Esses que ficam de fora não devem se acostumar aos absurdos e perversões da história - as anexações de territórios, os deslocamentos forçados de populações para satisfazer as ambições econômicas de líderes paranoicos, os desaparecimentos de povos e territórios. A etnopsiquiatria foi a primeira a acolher a fala dessas populações não listadas, desses marginalizados sem representantes, reconhecendo seu pensamento e modo de vida, sem desqualificar suas experiências.

A etnopsiquiatria é, portanto, uma perspectiva de psicoterapia que considera o mundo como é: aberto, diverso e múltiplo. Por isso inclui distintos povos e perspectivas sobre o cuidado, onde eles mesmos são especialistas em sua consulta. Entende que o doente não é apenas aquele que sofre, mas um ator da vida social, que partilha sua experiência. Por isso trata-se de resistir à banalidade das ciências humanas, aos pensamentos aceitos, às "evidências" desse mundo erudito.

Para além de uma clínica dedicada aos migrantes, concebe que as pessoas ocupam lugares distintos, e que é necessário abertura para entender às distintas maneiras de sofrer e se alegrar de diferentes pessoas e grupos. O trabalho clínico é chamado muitas vezes de “consulta” ou “conciliação”, sendo muito mais um método, uma ética, do que uma disciplina, que faz da incerteza uma virtude e do diálogo aberto a fonte de seus saberes.

Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
CENTRE GEORGES DEVEREUX. O que é etnopsiquiatria?. Disponível em: www.ethnopsychiatrie.net. Acesso em: 16 fev 2023.
CENTRE GEORGES DEVEREUX. O que é a consulta em etnopsiquiatria?. Disponível em: www.ethnopsychiatrie.net. Acesso em: 16 fev 2023.
FRAYZE-PEREIRA, João. O que é Loucura. São Paulo: Brasiliense, 2002.
LAPLATINE, François. Aprender Etnopsiquiatria. Trad.: Ramon Vasques. São Paulo: Brasiliense, 1998.

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