Fenomenologia é uma perspectiva que busca descrever e compreender as experiências e as percepções, com o intuito de tomar contato com as coisas tal como se apresentam à consciência. Esta vertente de filosofia surgiu no início do século XX, com das obras do filósofo e matemático alemão Edmund Husserl (1859-1938), que teceu críticas sobre o idealismo, o historicismo, o positivismo e o psicologismo.
Em pouco tempo, a fenomenologia passou a ser utilizada na psicologia, com influências de Martin Heidegger (1889-1976) sobre os psiquiatras suíços Ludwig Binswanger (1881-1996) e Medard Boss (1903-1990) se constituiu a Daseinsanalyse. Karl Jaspers (1883-1969), psiquiatra e filósofo, elaborou uma proposta de psicopatologia fenomenológica e compreensiva em sua obra 'Psicopatologia Geral', publicada em 1913, onde propôs uma análise da subjetividade em seu contexto histórico e existencial.
Uma das principais características da fenomenologia consiste em tomar contato com o fenômeno sem qualquer teorização, objetificação ou noções prévias sobre ele, buscando se aproximar da experiência do modo este como se apresenta. Fenômeno é tudo aquilo que aparece, podendo ser uma emoção, uma experiência ou um pensamento, seja material e observável como também imaginado e lembrado, podendo ser uma expressão, um afeto ou uma vivência, com suas características próprias e singulares.
Na psicologia e na psicoterapia, essa proposta demanda uma escuta aberta, livre de julgamentos, preconcepções e pressuposições, de modo a possibilitar uma aproximação da experiência de outra pessoa e seu mundo vivencial, do modo como experiencia, valora, sente e se afeta por suas vivências. Para isso, deve-se evitar qualquer tipo de generalização ou teorização, compreendendo as experiências de uma pessoa e o sofrimento emocional em sua dimensão singular.
"A palavra 'fenomenologia' significa 'o estudo dos fenômenos', onde a noção de um fenômeno e a noção de experiência, de um modo geral, coincidem. Portanto, prestar atenção à experiência em vez de àquilo que é experienciado é prestar atenção aos fenômenos."
(David Cerbone, em 'Fenomenologia')
Diferente da metodologia utilizada nas ciências naturais, que busca o que está além das experiências para estabelecer leis e princípios gerais, a fenomenologia se dirige precisamente ao que é dado na experiência, deixando de lado qualquer intenção de analisar, traçar hipóteses ou pressupor algo que esteja além dos fenômenos que aparecem. De acordo com Cerbone (2014), a fenomenologia não procura os fundamentos causais da experiência, mas foca sua atenção na experiência mundana, como esta acontece.
Para descrever o trabalho do psicólogo na perspectiva fenomenológica, gosto de fazer alusão a uma viagem para uma cidade desconhecida, de um país desconhecido, onde me coloco como estrangeiro num lugar que não me é habitual, o lugar vai se revelando pouco a pouco, a cada contato e aproximação, tal como a singularidade de uma pessoa em terapia. Trata-se de uma postura de abertura para o desconhecido, onde o terapeuta não utiliza de nenhuma categorização sintomática, como “neurose”, “ansiedade”, “bipolaridade”, “depressão”, entre outras.
Quem utiliza categorizações acredita, de modo geral, que é possível reduzir a complexidade das experiências de uma pessoa em termos previamente definidos, porém, numa perspectiva fenomenológica, as categorizações não nos possibilitam uma aproximação da experiência ou do sofrimento de uma pessoa, mas a uma teorização generalista sobre esta, que pode gerar um distanciamento desta pessoa. Na fenomenologia, as categorizações são entendidas como secundárias às experiências, que generalizam e simplificam a complexidade das vivências de uma pessoa.
"A fenomenologia é, portanto, o caminho de volta às coisas mesmas, ao mundo da experiência vivida ou Lebenswelt (mundo-da-vida)."
(Cinthia Struchiner, em 'Fenomenologia: de volta ao mundo-da-vida')
As descrições sintomáticas não são o mesmo que as experiências, pois são teorizações sobre um conjunto de algumas características manifestas, que não correspondem necessariamente às experiências singulares de uma pessoa, e que podem inclusive limitar a percepção a respeito desta pessoa. Diferente desta perspectiva, a fenomenologia visa tomar contato com a experiência vivenciada em sua trama de relações, se aproximando do fenômeno anteriormente a qualquer teorização científica sobre ele, tomando contato com a experiência do modo como esta acontece.
A fenomenologia propõe uma aproximação pré-reflexiva e anti-predicativa, anterior a qualquer definição ou determinação objetiva, possibilitando um contato com o que se apresenta num dado momento, em suas especificidades e peculiaridades. Quando o que se apresenta é uma pessoa, trata-se de uma aproximação às suas experiências, do modo como as vivencia singularmente e como as expressa. As categorizações fazem o inverso, pois entendem as pessoas a partir de generalizações, que não correspondem à experiência singular de cada um.
"A fenomenologia (...) foca precisamente no que é dado na experiência, abstendo-se inteiramente do método de formular hipóteses e extrair inferências do que é dado para o que se encontra aquém ou além disso."
(David Cerbone, em 'Fenomenologia')
Neste sentido, me coloco contrário a qualquer uso da fenomenologia que sustente ou recaia, de alguma maneira, em categorizações psicológicas. Partindo do pressuposto fenomenológico da suspensão do juízo, a epoché, que consiste em deixar entre parênteses as pressuposições teóricas e objetivas para tomar contato com o fenômeno que se apresenta, esta proposta não busca teorizações, mas tomar contato com o que se apresenta, tomando contato com a singularidade.
Qualquer atuação psicológica que utilize categorizações sintomáticas, atua a partir de saberes a priori, seja sobre temas como o desenvolvimento psicológico "adequado", a noção de "estrutura" psicológica, inclusive quanto ao entendimento de "saúde psicológica", que são pressuposições estabelecidas anteriormente ao contato com a pessoa. Diferente desta prática, a fenomenologia propõe a suspensão de todos os julgamentos, avaliações e predicados sobre a pessoa, de modo a aproximar de sua experiência tal como vivencia no cotidiano.
"Pensar não é unificar, familiarizar a aparência com o aspecto de um grande princípio. Pensar é reaprender a ver, dirigir a própria consciência, fazer de cada imagem um lugar privilegiado. Em outras palavras, a fenomenologia se nega a explicar o mundo, quer apenas ser a descrição do vivido."
(Albert Camus, em 'O mito de Sísifo')
Numa perspectiva fenomenológica, não há como partir de noções prévias sobre o que seja o "ser humano", ou o "saudável", antes do contato com a pessoa, com suas percepções e afetos com relação a si mesma e sua noção de "saudável" ou de "ser humano". Pressupor ideias sobre o funcionamento de uma pessoa ou relacionar seus comportamentos e emoções a categorias sintomáticas é o inverso de fazer fenomenologia. Termos como "saúde" ou "patologia", "neurose", "transtorno", "desenvolvimento atípico", são teorizações e não experiências singulares.
O uso de categorias sintomáticas na psicologia é uma atuação contrária à proposta fenomenológica, pois psicologiza o real a partir de teorias previamente estabelecidas, que não correspondem às experiências de cada pessoa, em suas peculiaridades. A fenomenologia propõe outra maneira de tomar contato com o real e de acessar as singularidades, entendendo que todo conceito científico e toda a ciência é uma elaboração posterior à experiência vivida, o que interessa à fenomenologia é justamente a experiência vivenciada e não sua conceituação ou teorização.
"Não existem descrições específicas de cada um dos transtornos mentais, de maneira que seja possível categorizá-los em suas etiologias, prognosticá-los e oferecer terapêuticas. Se há quem assim o faça, opera opostamente a que o uso rigoroso do método fenomenológico observa."
(Silverio Karwowski, em 'Por um entendimento do que se chama psicopatologia fenomenológica')
Albert Camus comenta, em seu ensaio sobre o absurdo, que o conhecimento verdadeiro é impossível, e que, portanto, só podemos enumerar as aparências e apresentar o ambiente. Termos como "depressão", "pânico", "burnout", "ansiedade" e "neuroses" são elaborações conceituais e teóricas acerca de um conjunto específico de comportamentos manifestos, são tentativas de nomear o complexo das experiências de uma pessoa, que não correspondem à totalidade desta pessoa. A fenomenologia propõe deixar de lado tais pressupostos, pois o que interessa é justamente a experiência singular.
Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico.
Referências:
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2019.
CERBONE, David. Fenomenologia. Petrópolis: Vozes, 2014.
KARWOWSKI, Silverio Lucio. Por um entendimento do que se chama psicopatologia fenomenológica. Rev. abordagem gestalt., Goiânia, v. 21, n.1, p. 62-73, jun. 2015.
STRUCHINER, Cinthia. Fenomenologia: de volta ao mundo-da-vida. Rev. abordagem gestalt., Goiânia, v. 13, n. 2, p. 241-246, dez. 2007.