Perspectivas sobre saúde em Nietzsche

Friedrich Nietzsche foi um filósofo perspectivista, que não buscava alcançar uma unidade, mas tomar contato com distintas perspectivas sobre temas diversos. A temática da saúde aparece em muitas de suas obras, com diferentes entendimentos. De modo geral, ela se relaciona com sua crítica à moralidade, com a retomada do corpo, a reavaliação da vida que levamos, a perspectiva da força e a vontade de potência.

Nietzsche não propõe um único conceito sobre a saúde, ele opera diversas aproximações e distanciamentos sobre a saúde, apresentando distintas percepções. Isso não significa que sua contribuição não tenha relevância, por conta de sua inconclusão ou ausência de unidade, trata-se antes de tudo uma característica de seu modo de filosofar, que consiste em perceber a saúde enquanto um processo complexo, tal como a vida.

Suas percepções sobre a saúde estão para além da perspectiva de saúde utilizada tradicionalmente no âmbito da medicina. Para ele, a doença não é apenas uma experiência negativa, entendendo que há doenças que podem nos proporcionar experiências de saúde. Do mesmo modo que há estados de saúde, em termos médicos, que podem ser doentios. Suas perspectivas sobre saúde e doença são mais amplas e complexas do que as noções da medicina ou do senso comum.

"Pois não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o que deve significar saúde também para seu corpo. Assim, há inúmeras saúdes do corpo."
(Friedrich Nietzsche, A saúde da alma, em ‘A Gaia Ciência’)

Nietzsche questionou os entendimentos tradicionais sobre a saúde, propondo uma perspectiva afirmativa e vitalista com relação à existência. Ele não entendia a saúde enquanto um mero estado de repouso, uma simples ausência de doenças ou sofrimento emocional, mas como um estado de vitalidade, de força, alegria e potência. A saúde, segundo ele, consiste numa postura de afirmação da vida, potencializando a existência em sua multiplicidade.

Contrariando as perspectivas moralistas que defendem o controle de si e a negação dos instintos, Nietzsche entendia que a saúde se relaciona com a possibilidade de expressar os impulsos. A vontade de potência é uma força criativa e afirmativa, enquanto a repressão dessa força nos leva à decadência e submissão. O filósofo alemão criticou a tendência da conformidade social e da supressão de si em favor das convenções coletivas, em vez disso ele defendeu a transvaloração dos valores e a superação de si.

Neste processo confrontamos nossos próprios demônios, questionando nossas crenças e os valores estabelecidos, para criar outros modos de vida mais potentes. Neste sentido, a saúde não é um estado permanente e fixo, mas um processo contínuo de transformação, numa postura dinâmica e afirmativa sobre si. A saúde consiste numa disposição para com a vida, que conduz a uma afirmação da existência, em sua plenitude e em seu caos.

"Nós, os novos, sem nome, de difícil compreensão, nós, rebentos prematuros de um futuro ainda não povoado, nós necessitamos, para um novo fim, também um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, mais forte, alerta, alegre, firme, audaz que todas as saúdes até agora."
(Friedrich Nietzsche, aforismo 382, em 'A Gaia Ciência')

Para Nietzsche, a vida acontece numa dinâmica de forças, onde há forças que potencializam e ampliam, que nos alegram e nos habilitam a compor novos modos de vida, e forças que enfraquecem e inferiorizam, que nos entristecem e impedem a criação, nos tornando meros animais gregários, reprodutores de uma moral já dada, numa postura submissa. Sua avaliação sobre a saúde implica numa avaliação da vida a partir da dinâmica das forças e da potência, para afirmar a própria vida.

Nessa avaliação é possível constatar quais de nossas atitudes são sintomas de saúde e quais são sintomas de decadência. Seu critério de avaliação é o modo como nossas disposições mobilizam nosso corpo e pensamento, entendendo uma disposição saudável e forte enquanto aquela que amplia potências para o ensaio, a experimentação e a criação de novos sentidos e valores. É com essa disposição que criamos valores afirmativos, para isso é necessário realizar uma autodiagnose.

"O corpo, para Nietzsche, é um complexo de vontades de potência que se organizam hierarquicamente. Na doença, o que encontramos é a desagregação, a incapacidade de um corpo organizar e impor uma direção à multiplicidade que o constitui. Saúde, para Nietzsche, significa portanto a organização dos complexos de impulsos fisiopsicológicos, forma orgânica da vontade de potência."
(André Itaparica, em 'Dicionário Nietzsche')
Assim podemos pensar numa saúde que se coloca em favor de uma constante reinvenção de si, contrário à busca de uma "saúde perfeita" ou uma "saúde universal", enquanto um modelo a ser seguido por todos. De acordo com Nietzsche, a temática da saúde é uma questão pessoal, pois depende de seu corpo, de suas necessidades e do modo como reage às circunstâncias, entendendo os conflitos e as dificuldades como estimulantes e potência para a própria vida. Um sofrimento, uma dor ou uma perda podem gerar saúde e um desejo renovado pela vida.

Deste modo, Nietzsche propõe uma disposição para o sofrimento e as inconstâncias da vida, sem sermos derrubados por elas, fazendo dessas experiências novas possibilidades para reavaliar a própria vida e compor outros modos de existência. Diferente da perspectiva convencional sobre a saúde, que a entende enquanto ausência de doença, para Nietzsche a saúde pode ser uma disposição diante da doença, que a transforma numa afirmação da vida, mesmo em seus momentos dolorosos, tornando a experiência uma potência de vida.  

Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
CZERINA; MACIEL; OVIEDO. Os sentidos da saúde e da doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013.
ITAPARICA, André. "Saúde". Em: GEN. Dicionário Nietzsche. São Paulo: GEN/Loyola 2016, p. 369-371.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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