O livro "História da Loucura", de Michel Foucault, é resultado de um estudo detalhado a respeito de como se transformaram historicamente os entendimentos e as disposições para com a loucura e o louco no ocidente. O autor apresenta como a loucura se tornou um objeto médico, com um progressivo domínio da razão sobre a loucura e um silenciamento do louco. Trata-se de uma história das mudanças de perspectiva, de olhar, de sensibilidade e das práticas com relação à loucura e o louco.
Por meio de suas pesquisas, Foucault entendeu que a loucura nem sempre foi uma questão médica, mas foi percebida e tratada de diferentes maneiras no percurso histórico. Em seu livro, ele aborda a passagem da Renascença para a Idade Moderna, e desta para o período Contemporâneo, onde constatou que a loucura foi entendida, anteriormente, como uma experiência diferenciada, depois como um problema da cidade, e por fim uma questão médica que necessita tratamento.
Este livro tem uma enorme importância para quem estuda psicologia ou psiquiatria, pois desnaturaliza a noção de doença mental, retomando seu caráter histórico e contingente, constatando que não é algo que existe ou sempre existiu, mas uma construção histórica muito recente. Suas pesquisas não envolvem apenas as teorias científicas, mas os saberes e as disposições sociais e culturais para com a loucura, questionando como saberes distintos possibilitaram a emergência de uma leitura médica sobre a loucura.
Foucault evidenciou a condição histórica dos saberes, das relações de poder e das práticas de si, rompendo com o modo tradicional de fazer filosofia, que buscava verdades eternas. Ele destacou os elementos implícitos nos saberes e nas relações, entendendo que o pensamento é resultante de uma trama de elementos em condições historicamente situadas. Suas pesquisas se direcionaram para as condições de possibilidade históricas da constituição dos saberes e das práticas.
“Desde seus primeiros escritos, a grande pergunta que domina todo o pensamento foucaultiano é, em definitivo, a seguinte: como foi possível o que é? Essa possibilidade é sempre histórica, não é a expressão de nenhuma necessidade; as coisas poderiam ter sido de outro modo e também podem ser de outro modo.”
(Edgardo Castro, em 'Introdução a Foucault')
Nesta obra, assim como em outras que publicou nos anos 1960, ele utilizou o método arqueológico, que não busca alcançar uma unidade de origem a respeito de um tema ou assunto de pesquisa, mas tomar contato com distintas manifestações e expressões que constituíram as condições que possibilitaram a elaboração dos saberes. Portanto, não buscou estudar o modo como uma ciência evoluiu, mas como diversos saberes e práticas constituíram o "científico".
A arqueologia rompe com a noção de uma história cumulativa, continuísta ou dialética das ciências, inclusive com a concepção de verdade essencial ou natural. Além disso, entende que a história de uma ciência não é linear, mas atravessada por exigências, coerções, rupturas, acidentes, desvios, recortes e crises. O método arqueológico busca as condições de enunciação dos discursos e de sua eleição como verdadeiros ou falsos, contrário à ideia de uma racionalidade global e unitária.
“A arqueologia tem por objetivo descrever conceitualmente a formação dos saberes, sejam eles científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência, e não de validade, considerando a verdade como uma produção histórica cuja análise remete a suas regras de aparecimento, organização e transformação no nível do saber.”
(Roberto Machado, em 'Foucault, a ciência e o saber')
Tal análise entende que há condições históricas que possibilitaram a constituição de saberes e verdades, convenções e normativas. Foucault não fazia história apenas para descrever as práticas passadas, mas para destacar as implicações destas na atualidade, analisando os acontecimentos não apenas das totalidades abrangentes, mas as singularidades, os discursos e o modo como estes produziram determinados saberes.
“Foi numa época relativamente recente que o Ocidente concedeu à loucura um status de doença mental.”
(Michel Foucault, em 'Doença mental e psicologia')
Inclusive, Foucault percebeu que as práticas "humanistas" para com a loucura não são "melhores" que as anteriores, mas técnicas mais refinadas e sutis de controle daquele que era percebido como "louco", visando encaminhá-lo à "normalidade", por meio de um direcionamento moralista, subjugando o louco. Segundo o autor, a psiquiatria é resultante de um processo histórico amplo, que não se trata de uma descoberta da loucura, mas de sua progressiva dominação e integração na ordem da razão, explicitando as precondições para emergência da psicologia e da psiquiatria.
Na obra são destacados três momentos da loucura: a Indiferenciação (séculos XV e XVI), onde não havia distinção entre loucura e saber, e o louco era um estranho que peregrinava livremente; a Segregação (séculos XVII e XVIII), quando a loucura passa a ser excluída da razão e enclausurada, apesar de não muito bem percebida; e a Medicalização (séculos XIX e XX), quando a loucura começa a ser entendida como “doença mental”, se tornando objeto médico e submetida a um tratamento.
“Desenvolvendo uma argumentação que tematiza não essencialmente o discurso psiquiátrico, mas o que lhe é anterior e exterior, História da loucura tem na psiquiatria seu alvo principal: seu objetivo é estabelecer as condições históricas de possibilidade dos discursos e das práticas que dizem respeito ao louco considerado como doente mental.”
(Roberto Machado, em 'Foucault, a ciência e o saber')
“Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da psicologia.”
(Michel Foucault, em 'Doença Mental e Psicologia')