No livro 'Revolução na Psicologia', o psicólogo britânico Ian Parker tece várias críticas à psicologia e psicopatologia hegemônicas, entendendo que estas disciplinas andam de mãos dadas com o capitalismo e que alienam as pessoas. O autor questiona o reducionismo biológico, a medicalização excessiva, a normalização e a patologização das diferenças, a descontextualização social da pessoa avaliada com transtorno, o modelo normativo de diagnóstico e o tratamento dos transtornos mentais.
A Psicologia enquanto ciência e profissão não é neutra, mas atua a serviço de uma ideologia dominante, tomando partido na produção de saberes e em sua atuação prática. Porém, essa questão não parece clara para a maioria dos estudantes e profissionais da área, impactando diretamente nas pessoas que buscam por serviços de psicoterapia, que são classificadas e separadas entre saudáveis e doentios, de acordo com suas disponibilidades ao trabalho ou à vida social. Parker propõe uma ciência que favoreça a emancipação de todos.
Trechos do livro:
Este livro é sobre a Psicologia, sobre a forma como a disciplina psicologia "traiu" sua promessa de compreender e ajudar as pessoas e o que nós precisamos fazer para que os psicólogos trabalhem pela mudança social, em vez de contra ela. A disciplina da psicologia, enquanto um campo de estudo acadêmico e prática profissional, busca descobrir como nós nos comportamos, pensamos e sentimos, mas o conhecimento e a tecnologia que os psicólogos produzem servem para adaptar as pessoas à sociedade. Por ser a sociedade atual organizada em torno da exploração e da subordinação, até mesmo o psicólogo mais bem intencionado contribui para a alienação, para a separação de nós mesmos dos outros ou de nossas próprias habilidades criativas.
A psicologia é um componente cada vez mais perigoso da ideologia, das ideias dominantes que endossam a exploração e que sabotam as lutas contra a opressão.
A psicologia também se estruturou no modo como aprendemos a pensar sobre nós mesmos, enquanto indivíduos e, assim, ela também adentra na forma como as pessoas pensam sobre si mesmas enquanto agentes políticos. Isso impacta a maneira como nós interpretamos e como nós tentamos mudar o mundo.
Uma trajetória individual pela escola é vivida como algo "psicológico"; cada criança é levada a viver seu fracasso como algo do qual ela é alienada; como se existisse alguma coisa profunda dentro dela mesma que nunca poderá realmente compreender ou evitar.
Na sociedade capitalista, impulsionada pelo lucro e pelo imperativo de consumir, há uma premiação para a "psicologia positiva", para que a felicidade venha a ser vista como o estado normal.
A psicologia como disciplina, chegou para desempenhar uma função muito específica no capitalismo. Já as teorias acadêmicas e as práticas profissionais, englobadas pela psicologia em escolas, empresas, hospitais e prisões, andam de mãos dadas com o poder.
A "psicologização" da vida cotidiana no capitalismo não é uma opção complementar, nem é um simples dispositivo usado pelos que estão no poder para nos dividir e nos dominar; a psicologização é essencial e necessária ao capitalismo.
Esta sociedade capitalista é exploradora e alienante e, certamente, intensifica a experiência individual, mas também constitui esta experiência individual como algo "psicológico", como algo que opera como se estivesse dentro de cada pessoa. Seja visto como um processo mental ou emocional, ele opera como algo que, simultaneamente, é uma propriedade particular do indivíduo e como algo que não pode ser completamente compreendido por ele. A alienação não é a mera separação de nós mesmos de outros, mas é um tipo de separação de nós mesmos em que experienciamos nós mesmos como habitados e impulsionados por forças que nos são misteriosas.
Tal imagem de forças profundamente enterradas em nosso interior, borbulhando, prestes a eclodir quando a tampa sair é exatamente o que o processo de psicologização encoraja, é parte do lado mais perigoso e reacionário da psicologia enquanto ideologia.
É preciso confrontar a psicologia em dois níveis: quando ela é explicitamente utilizada pelos chamados especialistas na vida dos outros e quando ela é implicitamente resgatada para fabricar argumentos políticos e reduzir as possibilidades de mudança radical.
O nascimento bastante recente da psicologia se deu por volta do fim do século XIX e mudanças espetaculares estavam ocorrendo na sociedade europeia que tornaram possível e necessário o estudo da "psicologia" individual. Mudanças nas relações de propriedade, na família e no estado engendraram os serviços de uma nova disciplina que estudaria e manteria a ordem social no nível individual. Isto foi tão bem-sucedido que, hoje, muitas pessoas tomam como algo dado a concepção de que esta disciplina é aquela que revela os segredos do eu (self).
A polícia pode ser capaz de lidar com a agitação política deliberada que ameaça a produção, mas para casos em que a irracionalidade individual pode transbordar em descontentamento coletivo é necessário um novo corpo de profissionais: é aí que entram em cena os psicólogos.
A Psicologia como disciplina buscou conhecimento, mas isto foi associado ao poder.
Um dos textos fundamentais para a nova disciplina, A história da Psicologia Experimental, escrito em 1929, pelo devidamente nomeado E. G. Boring, foi um documento programático. Este foi um manifesto para a disciplina que seria baseada em experimentos laboratoriais conduzidos por um pesquisador científico observando e mensurando o comportamento de "sujeitos" individuais.
Existiam duas pressões sobre os psicólogos no início do século XX: primeiro eles tinham que mostrar que seu conhecimento poderia ser reivindicado enquanto fundamentado em evidências, ao invés de vã especulação - a psicologia teria que romper com a filosofia para encontrar este terreno novo e mais seguro - e; em segundo lugar, algo associado com o tipo de "evidência" que as autoridades tinham em mente, eles deveriam apresentar um tipo de conhecimento que conseguiria predizer o comportamento.
Idealmente, a predição e o controle do comportamento deveriam operar desde o berço até o cemitério.
A formação em psicologia produz abordagens específicas ao "normal" e "anormal".
Um psicólogo que supõe que qualquer coisa sobre a experiência ou atividade de uma pessoa se ajusta a uma "distribuição normal" já está trabalhando no campo da ideologia e basta um pequeno escorregão para definir pressupostos limitantes sobre os seres humanos.
Estudos sobre tomada de decisão e formação de identidade ainda são a base principal da psicologia cognitiva e da psicologia do desenvolvimento. Estes estudos se ajustam muito bem com a busca por compreender as pessoas de tal forma que aqueles no poder podem ter certeza de que eles sabem o que seus sujeitos farão em seguida. Aqueles que não se ajustam aos modelos normativos sobre como um ser humano deve se desenvolver e pensar recebem atenção especial e, se eles não têm muita sorte, 'tratamento".
A psicologia permaneceu completamente fiel à sua história inicial, ao que há de pior nesta história. Ela se fundamenta na ideia sobre distribuições normais e outras distribuições de "obliquidade" que são mensuradas a partir daquilo que eles pensam que o mundo deveria ser. (...) A psicologia busca preparar as pessoas para levarem vidas produtivas dentro dos limites dos atuais sistemas político-econômicos, que são baseados na competição e no lucro.
Psicólogos não são o que pensam que são.
A maior parte dos psicólogos não está conscientemente engajada com a sobrevivência do capitalismo, mas a sua incapacidade de refletir sobre o que realmente está fazendo é tão grande quanto os fracassos cognitivos que espera encontrar naqueles que não são psicólogos. Eles não desempenham o papel grandioso que, algumas vezes, imaginam que deveriam desempenhar.
A psicologia não é somente sobre indivíduos, mas também é uma forma de teorizar e de administrar relações sociais. Ela realiza isto mirando o indivíduo e quebrando-o em componentes mensuráveis. O principal problema não é que isto não funciona. O principal problema é que isto funciona tão bem porque confirma algumas das práticas mais desumanizantes que muitas pessoas entendem como dadas, práticas que são parte necessária da fábrica da sociedade capitalista.
Fonte:
PARKER, Ian. Revolução na psicologia: da alienação à emancipação. Campinas, SP: Alínea, 2014.