Ser sadio não é ser normal

Normal e patológico são termos que parecem não necessitar de explicações, como se todas as pessoas soubessem distinguir o que é um comportamento normal de um comportamento patológico. Porém, quando paramos para pensar e tentar descrever cada um deles, sentimos uma grande dificuldade em conceituar. O que é considerado normal para um grupo social pode ser considerado patológico para outro, e vice-versa.

Todo trabalho em clínica terapêutica se orienta a partir de noções de normal e patológico, desde o início da terapia até o momento de avaliar seus resultados. Essas questões deveriam estar no centro da reflexão sobre a clínica, porém nem sempre isso acontece. Muitos terapeutas acabam reproduzindo o imaginário social que possuem sobre a normalidade e a patologia, entendendo como patológico aquele que se difere da maioria, de uma "normalidade social".

Há um ideal de saúde adequada que entende tudo o que difere deste ideal em patologia, percebendo as pessoas que não compactuam com este ideal como desviantes e inadequadas, como se elas devessem ser ajustadas a esta "normalidade". O filósofo e médico francês Georges Canguilhem (1904-1995), mencionou em 'O Normal e o Patológico', que o tratamento de um sofrimento visa sempre a restauração de um estado "normal" e que essa prática é orientada por valores.

Para Canguilhem, não é possível delimitar as diferenças entre as noções de "normal" e "patológico" de maneira objetiva, pois nem todo desvio a normalidade é uma doença, do mesmo modo que viver de acordo com normalidade não é sinônimo de saúde. O "normal" costuma ser entendido como o mais frequente, porém o saudável pode ser entendido como uma capacidade de criar outras maneiras de funcionamento para se preservar ou ampliar a saúde do organismo.

Neste sentido, não é possível utilizar medidas meramente objetivas, padronizadas e generalistas para avaliar o que é o saudável, pois é preciso compreender o quanto tal experiência possibilita ou reduz o processo de manutenção e ampliação da vida, o quanto ela permite ampliar própria experiência de saúde. Deste modo, é impossível descrever um fato normal ou patológico em si mesmo, sem avaliar os efeitos sobre cada pessoa e organismo.

Canguilhem propõe a noção de "normatividade vital", entendendo como uma capacidade de enfrentar situações adversas e obstáculos que afetam a vida, e encontrar outras maneiras de lidar com eles. Nesta perspectiva, o patológico teria como característica uma incapacidade de enfrentar desafios, uma espécie de estreitamento das possibilidades de ação de uma pessoa frente ao sofrimento. Ele propõe a adoção de uma perspectiva vitalista ao invés de mecanicista, entendendo a vida enquanto polaridade e fluxo constantes.

"A doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é também, e talvez sobretudo, o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio. A doença é uma reação generalizada com intenção de cura. O organismo desenvolve uma doença para se curar. A terapêutica deve, em primeiro lugar, tolerar e, se necessário, até reforçar essas reações hedônicas e terapêuticas espontâneas."
(Canguilhem, em 'O normal e o patológico')

Para avaliar a saúde ou a doença, seria preciso avaliar as pessoas e o contexto onde vivem, seus relacionamentos, seu trabalho, a cidade, o clima, etc. Nessas relações pode acontecer circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis, estabilidade ou variabilidade. Por isso, a saúde não pode ser pensada enquanto uma mera adaptação bem sucedida do indivíduo ao meio, mas como uma possibilidade de criação de novas normas de vida e de reestruturação da relação entre indivíduo e meio. 

A patologia não precisa ser entendida como uma ausência de algo, uma desordem ou negatividade, mas pode ser entendida como uma resposta, um recurso do organismo para reequilibrar sua relação com o meio. Nesta perspectiva, a patologia demanda a necessidade de produção de novas normas, possibilitando a reestruturação do mundo vivido para o surgimento de outros modos possíveis de se inserir no mundo, de se relacionar com os outros e consigo mesmo.

"De fato, assim me aparece agora aquele longo tempo de doença: descobri a vida e a mim mesmo como que de novo, saboreei todas as boas e mesmo pequenas coisas, como outros não as teriam sabido saborear — fiz da minha vontade de saúde, de vida, a minha filosofia..."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')

Numa perspectiva vitalista, a saúde não seria um estado de ausência de doença, mas uma disponibilidade vital que possibilita o indivíduo adoecer e se recuperar. Ser sadio não é ser normal, pois a saúde implica a doença, depende dela para se fazer saúde. É a partir da experiência da doença que é possível emergir a experiência de saúde, como uma reestruturação nos modos de vida.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e questionador, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico existencial e aconselhamento filosófico. Nos últimos anos se dedica a filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
BEZERRA JUNIOR, Benilton. O normal e o patológico: uma discussão atual. Em: SOUZA, Alicia Navarro; PITANGUY, Jacqueline. (Orgs.). Saúde, corpo e sociedade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Trad.: Mana Thereza Redig de Carvalho Barrocas. 6. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad.: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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