O livro "Conversa sobre terapia" escrito pela psicóloga Bilê Tatit Sapienza, é uma ótima referência para a prática terapêutica numa perspectiva fenomenológico existencial. A autora reuniu experiências, reflexões e estudos, descrevendo de maneira muito acessível como acontece numa psicoterapia nesta perspectiva, sem deixar de mencionar as referências teóricas para a prática.
Acredito que um dos intuitos desta obra é refletir sobre o sentido da terapia e o papel do terapeuta, bem como sobre como acontece um encontro terapêutico, onde a pessoa que busca terapia vai tomando contato com seus modos de perceber e experienciar a vida, de se alegrar e sofrer, reconhecendo sua história e ampliando suas possibilidades existenciais.
Trechos do livro:
Quem trabalha com fenomenologia convive com isto: a necessidade de ir direto ao fenômeno tal como se apresenta - ir atrás de seu significado naquele caso especial, único, um significado que pode mesmo contrariar qualquer teoria de psicologia -, sem, contudo, ignorar as teorias que pretendem explicá-lo. Quando, conhecendo as teorias, você conseguir manter o pensamento aberto para permanecer diante do fenômeno, livre das teorias, você vai ter a sensação de estar honestamente fazendo fenomenologia; saberá o que está deixando de lado e por que faz isso. Você sentirá que o faz porque o apelo do fenômeno é maior.
O momento da terapia é aquele privilegiado, em que fazemos uma fenomenologia da existência. (...) Sua existência se abre para ser compreendida. Esse é o fenômeno ali. Ele é absolutamente singular: porque aquela vida de que se trata e única, aquela sessão é única, a relação entre aquele terapeuta e aquele paciente é única. Não há duas terapias iguais.
E ali, na terapia, a única fenomenologia que interessa é a dessa historia particular, e a da existência do paciente que esta na sala. Nisto consiste o trabalho que ali se realiza: deixar que as coisas apareçam com seus significados, reuni-los e permitir que sentidos se articulem.
Terapia é um pouco isto: oportunidade de o paciente poder olhar, de novo, para o que foi vivido e passou - ou não passou -, para o que é vivido agora, e autenticar tudo como sendo dele, como sendo ele.
Terapia também é isto: ocasião de ver que essa é a vida que se realizou, que foi esse o caminho percorrido, mas é um caminho que continua e, o mais importante, pode ir em direções diferentes. (...) Mas o mais comum é que esse poder ir em outra direção queira dizer: mudar a direção do olhar, poder ver outros significados nos fatos que, em si continuam os mesmos; poder sentir que, exatamente porque aquela história é especialmente a dele, ele é seu protagonista e cabe a ele trazer elementos novos para ela.
Terapia é um pouco isto: possibilidade de dirigir um olhar diferente para a própria existência e, assim, reformular significados.
Então, terapia é também um pouco isto: ocasião de ouvir a própria voz a dizer coisas que, uma vez ditas, encorpadas na voz, são acolhidas por ouvidos humanos. Tomando corpo assim, elas se mostram com mais nitidez. Pensamentos e sentimentos expressos dessa forma podem ser compreendidos melhor em suas proporções e significados.
A concepção de existência como "ser-no-mundo" representa modificações radicais de ordem filosófica e epistemológica. A existência é o "lugar", é o "aí" onde há "mundo", e "mundo" já é sempre o "aí" onde a existência é. Existência e "mundo" são co-originários. Um não é anterior ao outro.
Terapia não pode deixar também de ser isto: o lugar onde se pode ouvir a própria resposta à pergunta inevitável: o que tem valor para mim?
Terapia é um pouco isto: uma rara ocasião de aprofundar o pensamento em coisas que, à primeira vista, parecem ser simplesmente questões de opinião, já resolvidas, mas que, na verdade, precisam ser pensadas.
O paciente expressou o que para ele tem valor e até contou o que faz concretamente para conseguir seu objetivo. Mas, além disso, que outras coisas ele valoriza? O que mais constitui a sua existência? Aonde o leva esse seu modo de ser? Dentro de que contexto de significados o que ele descreve faz sentido? E o terapeuta já tem ideia desse contexto de significados que é o mundo dele? Será que aquilo que ele disse que é seu maior valor é mesmo o mais importante ou, quem sabe, será um meio para outra coisa, que representa até mais, outra coisa que ele ainda não conseguiu ver e, se conseguisse vê-la, talvez a buscasse de algum outro modo? Então, é preciso calma, facilitar que essa conversa se prolongue que puxe outras, e talvez isso leve tempo.
O terapeuta está lá para ser essa abertura, numa disponibilidade para a compreensão daquilo que chega e se mostra; daquilo que não se mostra diretamente, mas se insinua, e, com paciência, acaba por aparecer; e também daquilo que nem sequer se insinua, visto que dele nem podemos dizer que "é", mas que passa a "ser quando pode, enfim, articular-se na linguagem – a "linguagem" é a morada do ser" -; e, para isso, vai ser preciso mais paciência ainda.
A paciência é pronta; atenta não só ao que é dito, mas ao como é dito, a voz mais solta ou embargada, aos rodeios, aos desvios, aos silêncios; e atenta aos gestos do paciente, a sua postura. Essa paciência é a que permite estar em sintonia com a tristeza dele e, às vezes, sem achar que isso é perder tempo, poder rir com ele - a terapia não é feita só de lágrimas -, quando naquele dia o paciente traz o seu lado bem-humorado e as coisas boas da sua vida, porque isso também faz parte da vida dele.
Num dizer mais rigoroso, o fenômeno com o qual lidamos não é um "psiquismo", que precisaria de uma teoria psicológica científica para explicá-lo. Lidamos com o fenômeno da existência, e, segundo a concepção de que partimos, a existência é, em cada caso, a minha, a sua, a do paciente em sua sala.
Fenomenologia não é urna teoria. É um modo de se aproximar de um fenômeno, que se caracteriza, principalmente, por deixar que ele se mostre tal como se apresenta o mais possível sem a interferência das teorias já existentes sobre ele. Mas o fenômeno só se mostra quando alguém olha para ele, aproxima-se dele na procura de compreendê-lo e explicita-o na linguagem. Na terapia, o fenômeno em questão é a existência do paciente.
Terapia vem da palavra grega therapeía-as, de therapeúein, e tem os significados de: servir, honrar, assistir, cuidar, tratar.
Então, qualquer cuidado terapêutico tem a ver com o devolver, recuperar ou resgatar para aquilo que é cuidado algo que diz respeito a ele e que por algum motivo foi perdido ou prejudicado; isso quer dizer: favorecer que aquilo de que se cuida retome mais plenamente aquilo que se espera dele, ao que é próprio dele.
Ha terapeutas que ficam sempre tão preocupados em descobrir alguma coisa que deve estar no fundo, sempre por trás do que está sendo dito, do evidente, que desqualificam tudo o que está diante dele. Interessante é que há pacientes que acabam por se acostumar com esse estilo, e acreditam no poder do terapeuta de descobrir coisas que só ele, o terapeuta, sabe, não importa se aquilo faz ou não sentido para eles, os pacientes.
Mas para quem faz uma fenomenologia da existência, nada da existência é mera aparência. Ao mostrar-se, ela o faz como tudo aquilo que se mostra, que se apresenta: sempre ocultando e sempre desocultando algo. E há sempre alguma verdade no que se desoculta.
Fonte:
SAPIENZA, Bilê Tatit. Conversa sobre terapia. São Paulo: EDUC; Paulus, 2004.