Michel de Montaigne, foi um grande pensador do século XVI, tendo desempenhado um papel crucial na transformação do pensamento da época. Nascido em 1533, numa família nobre e se formado em Direito, dedicou-se à magistratura antes de se retirar para seu castelo em Montaigne, no sudoeste da França. Este filósofo, escritor e ensaísta francês viveu o período do Renascimento, da retomada do homem como centro do universo, e retomada da sabedoria clássica dos gregos antigos.
O surgimento da imprensa contribuiu para a disseminação das ideias renascentistas, marcando uma era de valorização da razão e de seu uso para alcançar as verdades. Em sua obra mais conhecida, "Os Ensaios", Montaigne abordou assuntos pessoais, cotidianos, políticos e filosóficos, inaugurando o ensaio como um gênero literário. Ele se destacou como um dos primeiros escritores a incluir a subjetividade como tema central de seus ensaios, anunciando: "Sou eu mesmo a matéria de meu livro".
Seus ensaios eram textos escritos por meio de tentativas e aproximações, sem a rigidez de um método ou de ideias acabadas, muitas vezes sem chegar a conclusões definitivas, convidando o leitor a considerar diferentes perspectivas. Montaigne entendia o ensaio como um meio para contestar as certezas absolutas, assim sua escrita emergia de reflexões sobre suas experiências e pensamentos, num estilo muito pessoal e original.
"Não posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia como sob o efeito de uma embriaguez natural. Pinto-o como aparece em dado instante, eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem."
(Montaigne, em 'Os Ensaios')
Montaigne não aderiu a nenhuma corrente de filosofia, se colocando independente da tradição, concebendo que o tempo algo valioso quando passamos com aquilo que nos agrada, mesmo que isso pareça pouco glorioso ou exemplar para os outros, dando valor ao exercício do que é próprio em nós mesmos. Segundo ele, podemos utilizar a filosofia para viver o presente e aproveitar cada momento da vida, sem nos preocuparmos muito com o futuro ou com o passado.
Este filósofo possuía uma visão bem ampla sobre o mundo e os diferentes hábitos culturais. Ele passou quinze meses viajando por diversos países da Europa, chegou a conhecer três caciques das Américas e constatou que estes, que eram chamados de "selvagens", eram superiores aos europeus em vários aspectos, enquanto os europeus se colocavam como selvagens, matando os nativos por conta da conquista das Américas.
Seu processo de autoinvestigação implicava numa prática de olhar para si mesmo, reconhecendo suas mudanças e inconstâncias, adotando uma abordagem livre e pessoal para descrever sobre temas específicos de suas experiências, utilizando argumentos e exemplos próprios para sustentar suas ideias. A liberdade e a pessoalidade na exposição de seus pensamentos contrastava com gêneros mais estruturados como a poesia e o romance.
"Em verdade, o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e diverso. Dificilmente fundaríamos sobre ele julgamento constante e uniforme."
(Montaigne, em 'Os Ensaios')
Crítico da abstração escolástica e do renascentismo livresco, Montaigne influenciou significativamente a literatura e filosofia, especialmente algumas características que estariam presentes no romantismo do século XIX, antecipando a noção de "eu" na modernidade, enquanto interioridade, destacando-se como o filósofo da autoinvestigação e da subjetividade, afastando-se da busca pela verdade em favor da questão de viver bem.
Em sua filosofia, ele recusou a supervalorização da razão, entendendo que o conhecimento só podia alcançar as aparências. Não se colocava como um modelo ou ideal, nem buscava uma lei universal, mas se dedicou a investigar a condição mundana e singular de cada ser, expondo em "Os Ensaios" um homem comum narrando episódios corriqueiros: "Falo de mim mesmo, de Michel de Montaigne, e não do gramático, poeta ou jurisconsulto, mas do homem."
Para o filósofo, a busca pela sabedoria deveria ter como finalidade viver bem. Pensar sobre si mesmo era o caminho para o autodomínio da vontade e dar sentido à vida. O reconhecimento de que a vida é tudo o que temos nos deve colocar numa posição de dar maior importância ao nosso ser, ele menciona que "Desdenhar a vida é ridículo, porque afinal de contas a vida é nosso ser, nosso tudo."
Montaigne encarava a vida em sua totalidade, reconhecendo que as alegrias e tristezas eram elementos característicos da condição humana. Sua autoinvestigação, nesse contexto, implicava em utilizar suas vivências, sejam estas boas ou ruins, como referências para escolhas futuras: "A vida por si só não é bem nem mal: é o lugar do bem e do mal conforme a fazeis."
Valorizando a pessoa que somos, independente de nossos fracassos ou êxitos, Montaigne recomendava interiorizar-se e entrar em contato com outros costumes e pontos de vista, visando ampliar perspectivas e duvidar de suas próprias, buscando saberes e perspectivas mais amplas. Voltar-se para si mesmo teria o sentido de reconhecer a fragilidade de nossas crenças e lidar com as incertezas.
"A cada minuto me parece que escapo de mim."
(Montaigne, em 'Os Ensaios')
Essa prática de mergulhar em si mesmo buscava um aprofundamento na percepção sobre si, não procurando algo por trás do visível, mas reconhecendo cada acontecimento em sua singularidade. Ele questionava como o hábito nos tornava cegos e insensíveis ao cotidiano, sugerindo que aquilo que consideramos conhecido e seguro talvez não seja.
A natureza, de acordo com Montaigne, aparecia desordenada e monstruosa, mutante e incontrolável. Conhecer e respeitar a natureza era essencial, qualquer tentativa de sujeitá-la seria insensata. Ele reconhecia a falta de controle sobre o curso das experiências: "Não vamos, somos levados com as coisas que flutuam, ora docemente, ora com violência, conforme a água é turbulenta ou calma. Flutuamos entre diversas opções: não queremos nada livremente, nada absolutamente, nada constantemente."
Montaigne entendia a filosofia como uma forma de preparação para a morte. Ela deveria nos auxiliar na aceitação serena e natural desse inevitável destino, permitindo viver o presente, aproveitando cada momento sem excessiva preocupação com o futuro ou passado. Sua autoinvestigação se direciona para a busca do bem viver e da valorização da vida em sua plenitude.
Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e questionador, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico existencial e aconselhamento filosófico. Nos últimos anos se dedica a filosofia da diferença e psicologia crítica.
LUDWIG, Carlos R. Subjetividade e autoinvestigação nos Ensaios de Montaigne. In: Revista de Letras, UNESP Online, v. 53, p. 7-20, 2013.