A perspectiva crítica em psicologia propõe uma postura reflexiva e questionadora, problematizando os saberes e práticas da disciplina. Este olhar crítico não apenas repensa a atuação dos psicólogos no âmbito individual e coletivo, mas também revisita a própria constituição da psicologia enquanto ciência.
Pensar criticamente a psicologia implica em questionar como a psicologia atua e elabora suas teorias, constatando as condições históricas, sociais e culturais da produção de seus saberes e de suas intervenções, entendendo esta ciência como uma técnica de poder e de manutenção social, que estabelece um controle sobre a subjetividade das pessoas e seus modos de vida.
Ao questionar as bases epistemológicas da psicologia, a perspectiva crítica busca desvelar os interesses ocultos por trás de seus saberes e práticas, revelando as influências econômicas, morais, políticas e ideológicas que permeiam a disciplina. Longe de ser uma ciência "neutra" a psicologia é compreendida como uma técnica de poder, que exerce um controle psicopolítico sobre os sujeitos.
Na atualidade, a psicologia assumiu a pretensão de dizer a "verdade" sobre as pessoas, sobre suas questões mais íntimas e subjetivas, normalizando condutas e modos de vida, encaixando no paradigma do "saudável". A busca do "saudável" se alinha com o considerado "adequado" socialmente, apresentando modelos de criação de filhos, superação de crises, enfrentamento de traumas e relações no trabalho.
"A Psicologia para mim, hoje, não passa de um ramo da Política. Um ramo ou aliado poderoso que, aliás, vem servindo à manutenção dos sistemas autoritários, fingindo ser uma ciência apolítica e independente."
(Roberto Freire, em 'Soma: uma terapia anarquista')
Fazer crítica em psicologia consiste em questionar os fundamentos epistemológicos da disciplina, sejam estes científicos ou não, refletindo sobre as condições de produção de seus saberes e práticas, fazendo emergir os intuitos disciplinares, sociais e morais presentes nas teorias e intervenções práticas, visando repensar a psicologia a partir de outras perspectivas, como a filosofia, a sociologia e a antropologia.
Entre as precondições teóricas, econômicas e culturais para a emergência da psicologia enquanto ciência estão o mecanicismo, a ciência moderna, o materialismo, o empirismo, o positivismo, o capitalismo, a fisiologia e o poder disciplinar, convergindo, no final do século XIX, para a organização de uma força de trabalho organizada e de um procedimento escolar disciplinado para conduzir as crianças adequadamente.
No início do século XX, a psicologia se dedicou a elaborar teorias da aprendizagem e testes avaliativos para a prática escolar e do trabalho. Suas teorias se direcionaram para a necessidade de organizar a força de trabalho nas fábricas e as crianças nas escolas. Partindo de uma perspectiva adaptativa, a psicologia passou a avaliar as pessoas a partir do nível de inadaptação ao campo social, diagnosticando e categorizando os "inadequados" socialmente.
"Quem são, porém, as pessoas sadias? Como se definem a si próprias? As definições de saúde mental propostas pelos especialistas usualmente correspondem à noção de conformismo a um conjunto de normas sociais mais ou menos arbitrariamente pressupostos."
(David Cooper, em 'Psiquiatria e Antipsiquiatria')
A psicologia se iniciou como um dispositivo para "ajustar" e "adaptar" as pessoas na escola e no trabalho, sustentando suas práticas por meio das técnicas, dos exames e dos testes psicológicos. O padrão de normalidade foi estabelecido a partir da capacidade de adaptação social de uma pessoa, e sua disposição ao trabalho. A finalidade da psicologia institucionalizada era eliminar as diferenças e a improdutividade, por meio de métodos e embasamentos ditos "científicos".
Há uma relação intrínseca entre a psicologia, capitalismo e neoliberalismo, evidenciada na forma como suas intervenções atuam em favor dos interesses dos grupos economicamente dominantes. A psicologia contribuiu para a ampliação da capacidade produtiva dos trabalhadores, conduzindo as crianças para o aprendizado, selecionando indivíduos "certos" para os lugares "certos", promovendo uma higienização moral da sociedade, por meio de um controle ao nível comportamental.
Entre as características da perspectiva que se tornou hegemônica na psicologia estão a análise do indivíduo separado do social, centrando nele as patologias e os transtornos psíquicos; um olhar adaptativo, avaliando o indivíduo a partir de sua inadaptação ao campo social; e uma busca de identificar "transtornos" nas pessoas inadaptadas ou diferentes do grupo social.
As práticas diagnósticas assujeitam as pessoas a partir das "verdades psicológicas", conduzindo modos de vida sustentados por discursos normativos, que operam enquadrando as pessoas segundo os padrões de normalidade ou anormalidade, adequado ou inadequado, apto ou inapto. Estamos caminhando cada vez mais para uma psicologia que não pensa, que não reflete sobre suas teorias, que apenas reproduz técnicas sem questionar.
"(...) nossas construções ideais de saúde e de normalidade em geral abrigam valores morais da cultura dominante da sociedade (...) O problema maior está em que não temos assumido essa adesão. Temos apontado esses valores e referências como naturais do homem; como universais."
(Ana Bock, em 'Psicologia Sócio-Histórica')
A psicologia científica passou a conceber o fenômeno psicológico como algo descolado da realidade vivencial da pessoa. Depressão, ansiedade, burnout e pânico, são entendidos como algo que “acontece” no interior da pessoa, como uma doença ou um vírus, mas que a pessoa não possui controle sobre. Não se questiona as condições de emergência desses estados psíquicos.
Esta percepção do fenômeno psicológico permeia a perspectiva positivista de psicologia, ocultando suas origens sociais, históricas e contextuais. Com isso, transforma todos os diferentes, peculiares e excêntricos em portadores de um "transtorno" ou "patologia" que deve ser corrigida e tratada. A noção de tratamento implica num "ajustamento social", portanto sua atuação não visa necessariamente a saúde das pessoas, mas seu ajustamento moral, realizando assim seu projeto normalizador.
"O diferente passa a ser combatido; visto como crise, como desajuste ou desequilíbrio; passa a ser 'tratado', com a finalidade do retorno à condição saudável e natural do homem. A Psicologia torna-se assim uma profissão conservadora que trabalha para impedir o surgimento do novo."
(Ana Bock, em 'Psicologia Sócio-Histórica')
Uma perspectiva crítica desafia o discurso dominante, que busca "normalizar" condutas e modos de vida, ocultando as condições econômicas, sociais e culturais nas quais as pessoas estão inseridas. A crítica também pretende despatologizar as diferenças, reconhecendo que o fenômeno psicológico é resultante das relações sociais e históricas, que precisa ser compreendido de maneira ampla e contextualizada.
Deste modo, a perspectiva crítica em psicologia se apresenta um convite à reflexão, colocando em questão as verdades estabelecidas, considerando as implicações políticas e sociais das práticas psicológicas para buscar novos meios de cuidado do sofrimento emocional. Não se trata apenas de um questionamento meramente teórico, mas uma abertura para outras maneiras possíveis de se compreender e lidar com a complexidade da experiência humana, mais respeitosas e libertárias.
Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e questionador, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico existencial e aconselhamento filosófico. Nos últimos anos se dedica a filosofia da diferença e psicologia crítica.