A arqueologia, segundo Foucault, é um método de análise que busca descrever as condições históricas dos saberes e práticas, destacando suas relações com as disposições de seu tempo. Seu intuito é evidenciar o modo como as condições culturais e as configurações de um período específico possibilitam a emergência de determinados saberes e enunciados. A arqueologia analisa o modo como os discursos se constituem em meio a premissas historicamente determinadas e como são usados para justificar e legitimar práticas.
Michel Foucault (1926-1984) produziu uma ampla e complexa obra, que perpassa e relaciona diversos temas, como a filosofia, a história, a medicina, a psiquiatria, o direito e as artes. Em suas pesquisas adotou diferentes abordagens para compreender as dinâmicas dos saberes, dos poderes e das práticas de si. O método arqueológico se faz presente em suas primeiras obras: "História da Loucura na Idade Clássica" (1961), "O Nascimento da Clínica" (1963), "As Palavras e as Coisas" (1966) e "A Arqueologia do Saber" (1969).
Sua arqueologia não se ocupa da escavação de ruínas, mas da análise dos sistemas discursivos e das práticas que constituem e habilitam os saberes e as disposições de uma época específica, revelando as condições de possibilidade históricas para a emergência de entendimentos e práticas. A análise arquelógica desenterra as camadas dos saberes, buscando compreender seus fundamentos e condições de aparição, por meio da análise de documentos, textos e discursos, abrangendo tanto o discursivo quanto o não discursivo.
O método arqueológico analisa os saberes a partir de sua constituição histórica, visando compreender o modo como cada discurso se constituiu, se estabeleceu e se transformou. Essa metodologia é utilizada para analisar as formações discursivas que configuram os entendimentos e as disposições de diferentes épocas e culturas, investigando como as precondições históricas influenciam a produção, disseminação e legitimação de certos saberes, e a consequente exclusão de outros.
"A arqueologia tem por objetivo descrever conceitualmente a formação dos saberes, sejam eles científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência, e não de validade, considerando a verdade como uma produção histórica cuja análise remete a suas regras de aparecimento, organização e transformação no nível do saber."
(Roberto Machado, em 'Foucault, a ciência e o saber')
Para Foucault, os saberes não se constituem numa trajetória linear no sentido de alcançar uma verdade, mas são resultantes de uma construção histórica, contextualmente situada. A arqueologia busca os vestígios dos saberes e das práticas, visando compreender como determinadas formas de conhecimento foram produzidas e legitimadas ao longo do tempo, mapeando uma época específica e identificando como distintas disciplinas e práticas se estruturaram e se relacionaram, sem a pretensão de apresentar um progresso a uma objetividade ou a uma ciência, mas descrevendo suas disposições momentâneas de saber.
Neste sentido, a arqueologia se difere da epistemologia, da história das ciências ou das correntes filosóficas, pois não busca estabelecer uma relação causal de um discurso com o que o precede ou segue, nem procura encontrar uma unidade discursiva, mas se interessa justamente pela especificidade dos saberes e das práticas em sua singularidade. Enquanto método para analisar discursos e práticas, a arqueologia não é interpretativa, pois se fundamenta nos arquivos e formações discursivas inseridos em seus contextos, sejam em meio a instituições, processos econômicos ou práticas sociais.
"Uma arqueologia não é uma 'história', na medida em que, em se tratando antes de reconstituir um campo histórico, Foucault, na verdade, trabalha diferentes dimensões (filosófica, econômica, científica, política, etc.) com o propósito de obter as condições de emergência dos discursos do saber em geral em uma dada época."
(Judith Revel, em 'Dicionário Foucault')
Ao invés de estudar a história das ideias, como se estas se formassem a partir de uma unidade discursiva, seguindo uma evolução cumulativa, a arqueologia reconhece que os saberes se configuram de maneira fragmentada e dispersa. Partindo deste entendimento, realiza um recorte horizontal dos acontecimentos discursivos, dos saberes locais e suas relações de poder, concentrando-se em recortes históricos específicos, com o intuito de descrever o modo como os saberes se correlacionam entre si numa configuração epistêmica.
Foucault utiliza a noção de "episteme" para se referir às condições de possibilidade para a produção de conhecimentos numa dada época. A episteme consiste num conjunto de regras e códigos fundamentais de uma cultura, que determina quais enunciados são considerados verdadeiros, quais práticas são aceitas e como o saber é organizado em cada período. Por meio da arqueologia, é possível revelar as transformações nas epistemes ao longo do tempo, destacando as condições que possibilitam os saberes, compreendendo como se configuraram, se alteraram e influenciaram os discursos e as práticas.
A análise arqueológica de Foucault abrange tanto os discursos quanto as práticas sociais, entendendo que ambos acontecem em relação. Não há separação entre discursos e práticas, pois ambos mantêm conjuntamente as relações entre saberes e poderes de um grupo social, de um período específico. Ao desvendar os discursos, a arqueologia também descreve as práticas que os acompanham, revelando como instituições e sujeitos agem em conformidade com as normas estabelecidas de um saber vigente.
"Foucault pretende analisar acontecimentos. Suas perguntas não se dirigem às totalidades abrangentes, mas à singularidade, às raridades. Suas problemáticas são do tipo: por que suscitaram em determinada época (e lugar) estes enunciados e não outros? Que condições de possibilidade colaboraram para que emergissem certos acontecimentos discursivos? Quais foram as condições de possibilidade históricas que produziram determinados saberes?"
(Esther Díaz, em 'A filosofia de Michel Foucault')
Michel Foucault concebia a ciência não como uma verdade única e inquestionável, mas como um campo de produção discursiva com pretensão de verdade, onde seus discursos estão intrinsecamente ligados a interesses políticos, religiosos, culturais e econômicos, em estreita relação com as práticas. Em suas obras, ele evidenciou a condição histórica e contingente dos saberes, das relações de poder e das práticas de si, destacando os elementos implícitos nos saberes e práticas.
Deste modo, buscou compreender as condições históricas que possibilitam a constituição dos saberes e entendimentos de cada época, de suas disposições e práticas, reconhecendo que os saberes são resultantes de contingências e uma variedade de elementos situados e contextualizados historicamente. Portanto, a ciência não faz descobertas sobre as coisas e os seres, mas cria discursos com pretensão de "verdade", permeados por interesses morais, culturais, econômicos e políticos.
Nem todos os fundamentos das teorias científicas são estritamente científicos, muitos são configurados por disposições sociais e culturais, hábitos e costumes de uma época. A ciência se constitui por saberes que são exteriores a ela. Assim, a arqueologia rompe com a noção de uma história cumulativa e continuísta das ciências, rompe com a perspectiva dialética e com as concepções de verdade "essencial" ou "natural", entendendo que a história de uma ciência não é linear e contínua, mas atravessada por exigências, coerções, rupturas, acidentes, desvios, recortes e crises.
Por meio da pesquisa arqueológica é possível tomar contato com as condições de enunciação dos discursos e de sua eleição como verdadeiros ou falsos. A análise arqueológica reconhece que existem condições históricas que possibilitam a constituição de saberes e verdades, que estão vinculadas às convenções e normativas de seu tempo. Dessa forma, compreende que os saberes, a ciência e o que entendemos como "verdade" não se constitui por meio de saberes "neutros", mas são influenciados por práticas sociais, históricas e culturais.
"Há condições de possibilidade que precedem o encontro do homem com a verdade. Cada época, cada cultura, cada episteme tem as suas. Elas são como o limite que marca quais enunciados podem ser considerados verdadeiros e quais enunciados nem sequer merecem ser considerados em um regime de verdade, inclusive nem para computá-los como falso. Essas condições esboçam o horizonte de aparecimento de verdades e, ainda, de falsidades. Aquilo que não está contido naqueles limites não ingressa na vontade de verdade do momento, é desvalorizado, ridicularizado, rejeitado."
(Esther Díaz, em ‘A filosofia de Michel Foucault’)
Em "A História da Loucura", Foucault utiliza a arqueologia para desafiar as concepções tradicionais sobre a loucura. Ele não apenas investiga os discursos que circundam a loucura, mas também examina as práticas institucionais que marginalizam e reprimem os indivíduos considerados loucos. A obra revela como a noção de loucura se transformou historicamente, sempre relacionada as transformações nas estruturas de poder e nos modos de saber.
Colocando em questão os entendimentos e as disposições para com a loucura e o louco, Foucault mostra como as práticas sociais e são constituídas pelos discursos e saberes prévios que as sustentam e legitimam. A arqueologia da loucura revela as complexidades das relações entre saber, poder e normatividade, destacando a arbitrariedade das categorias que rotulam e excluem certos grupos sociais, utilizando rótulos de loucos ou doentes mentais.
A relação entre discursos e práticas é evidente em obras como "O Nascimento da Clínica", onde Foucault analisa a transformação das práticas médicas e a emergência da medicina clínica. Sua arqueologia da clínica destaca como os discursos médicos foram reconfigurados, influenciando diretamente as práticas de diagnóstico, tratamento e inclusive a relação médico-paciente.
"Uma análise arqueológica, tal como proposta por Foucault, toma os discursos na sua exterioridade, buscando conhecer suas condições históricas de possibilidade. (...) trata-se de fazer um corte transversal num campo discursivo para analisar os monumentos, as peças históricas ali encontradas e buscar compreender como elas se relacionam. (...) ela se refere aos discursos como produções históricas."
(Kleber Filho, ‘Para uma arqueologia da psicologia’, em 'Foucault e a Psicologia')
A obra "As Palavras e as Coisas" oferece uma crítica aos fundamentos do pensamento ocidental, apresentando uma análise das transformações nas ciências humanas ao longo da história, revelando como diferentes épocas organizaram e classificaram o conhecimento de maneiras distintas. Foucault examinou as mudanças nas formas de conhecimento, linguagem e representação, demonstrando como as estruturas do saber estão relacionadas as configurações de poder.
Em "A Arqueologia do Saber", Foucault propõe uma reflexão sobre sua própria prática arqueológica. Ele explora as condições de produção do conhecimento e as limitações inerentes à análise arqueológica. Ao fazer isso, reconhece a inevitabilidade de sua própria posição no jogo de poder e saber que investiga. A arqueologia do saber torna-se, assim, uma autoconsciência crítica, um convite à reflexão sobre as condições de possibilidade de qualquer discurso.
A noção de arqueologia na obra de Michel Foucault oferece um método para a compreensão das relações entre conhecimento, poder, discursos e práticas, desenterrando as camadas de significado histórico e revelando as condições de possibilidade para a emergência de determinados saberes e práticas. Essa abordagem crítica nos permite compreender melhor o modo como os saberes são constituídos, colocando em questão as estruturas que configuram nossa compreensão de mundo.
Por Bruno Carrasco, terapeuta e professor, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico-existencial e aconselhamento filosófico. Possui interesse na filosofia antiga e contemporânea, em distintas perspectivas de psicologia e autores como Friedrich Nietzsche, Michel Foucault e Gilles Deleuze. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.
Referências:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014.
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
DÍAZ, Esther. A filosofia de Michel Foucault. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
GUARESCHI; HÜNING; FERREIRA [et al.]. Foucault e a Psicologia. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014.
MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.