Arqueologia da psicologia e da loucura

O método arqueológico utilizado por Michel Foucault (1926-1984) contraria as concepções tradicionais sobre a ciência e o saber, traçando uma análise crítica da história das formas de conhecimento. Enquanto uma análise das disposições e práticas do saber, sua abordagem buscou compreender as condições de existência dos discursos e a determinação dos saberes como verdadeiros ou falsos.

Segundo Foucault, a ciência e os saberes não atuam de maneira neutra e desinteressada, mas são permeados por interesses morais, econômicos e políticos, de modo que as verdades científicas se relacionam com as práticas sociais e culturais. Além disso, a história de uma ciência não é linear e contínua, mas atravessada por exigências, coerções, rupturas, acidentes, desvios, recortes e crises.

Sua arqueologia do saber busca desvelar as condições de enunciação dos discursos e de seu estabelecimento como verdadeiro ou falso. Contrariando a ideia de uma racionalidade global e unitária, sua perspectiva entende que os saberes são estabelecidos por meio de condições materiais e culturais específicas, bem como disposições de cada época.

“A arqueologia tem por objetivo descrever conceitualmente a formação dos saberes, sejam eles científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência, e não de validade, considerando a verdade como uma produção histórica cuja análise remete a suas regras de aparecimento, organização e transformação no nível do saber.”
(Roberto Machado, em 'Foucault, a ciência e o saber')

Na psicologia, Foucault analisou a tensão entre a exigência de se adequar ao modelo das ciências naturais, para ser aceita como ciência independente, entre o final do século XIX e início do século XX, e as contradições deste projeto. Na tentativa se orientar apenas por meio das explicações biológicas sobre o psíquico, a psicologia enfrenta sérias deficiências e dificuldades na compreensão do sofrimento emocional, não conseguindo lidar com as contradições e ambiguidades da experiência humana.

Foucault criticou as abordagens cientificistas que buscavam explicar a psique humana de maneira reducionista, apenas por meio das disposições fisiológicas, descartando o papel da cultura, das estruturas sociais, da linguagem e dos modos de vida de cada época. Deste modo, entendeu que a psicologia científica surgiu prioritariamente da demanda de normalização numa sociedade industrial crescente, se orientando pela norma, visando um padrão de conduta específico.

"Com efeito, à diferença do que sucede com o conhecimento da natureza, a psicologia não nasce das regularidades, mas das contradições da vida humana. A psicologia da adaptação surge, por exemplo, do estudo das formas de inadaptação; a da memória, do esquecimento e do inconsciente; a da aprendizagem, do fracasso escolar."
(Edgardo Castro, em 'Introdução a Foucault')

As apreciações de Michel Foucault sobre a loucura e a psicologia trazem uma análise crítica da construção do saber psicológico e psiquiátrico, especialmente no que diz respeito à patologização da loucura ao longo da história. Suas análises destacam uma interconexão entre técnicas de poder, disciplinarização, conhecimento e práticas sociais, revelando as disposições psicológicas e psiquiátricas com relação ao entendimento e atuação sobre a loucura e o louco.

Ao analisar a história da loucura, Foucault se atentou para a transformação das percepções e disposições com relação à loucura ao longo do tempo, destacando três períodos: o Renascimento, a Idade Clássica e a Modernidade. Cada um deles é marcado por diferentes práticas sociais, representações e concepções da loucura. No Renascimento a loucura é entendida como uma expressão de outro mundo, na Idade Clássica ela passa a ser excluída enquanto desrazão, e na Modernidade se torna uma questão médica.

Suas análises sobre a história da loucura evidenciam as relações entre poder e saber. A constituição da psiquiatria como uma disciplina médica que atua sobre a loucura está relacionada a uma reelaboração das formas de sujeição da loucura, não mais dispostas às jurisdições da cidade, mas submetidas ao domínio do médico. Os asilos psiquiátricos surgem para a internação daqueles que não se encaixavam nas normas da sociedade, e a psiquiatria exerce um poder sobre o louco, classificando, categorizando e intervindo.

"No registro das práticas sociais, Foucault aborda (na Renascença) a descrição da circulação da loucura, cuja figura maior está representada por essas naves, com os loucos embarcados, que percorriam alguns dos mais importantes rios da Europa. Passa depois à grande reclusão, o espaço no qual se recluiu quem já não tinha lugar na sociedade burguesa europeia dos séculos XVII e XVIII: os loucos, os indigentes, os vagabundos, os sodomitas, os blasfemos, as prostitutas, os libertinos, etc. E, finalmente, (...) surge o asilo psiquiátrico como o lugar de internação reservado aos doentes mentais. A cada uma dessas experiências sociais corresponde, no registro dos saberes (a filosofia, o direito, a medicina) ou da literatura, determinada concepção da loucura. Ela foi, para o Renascimento, a expressão de outro mundo, linguagem cósmica e trágica; para a Idade Clássica, desrazão; e para a Modernidade, doença mental."
(Edgardo Castro, em 'Introdução a Foucault')

Entre as questões colocadas na História da Loucura (1961), estão a transformação histórica dos entendimentos e disposições para com a loucura; o modo como a loucura se tornou um objeto médico por meio de um progressivo domínio da razão sobre a loucura; as mudanças de perspectiva, olhar, disposição, sensibilidade e práticas para com o louco, compreendendo que a loucura nem sempre foi uma questão médica, que necessita de um "tratamento".

Durante Renascimento, entre os séculos XV e XVI, a nave dos loucos é um tema pictórico e literário de uma prática social, o "Navio dos Loucos", onde os loucos eram embarcados para navegar sem rumo. No século XVII, há uma separação entre loucura e razão, onde a loucura passa a ser entendida como ausência de razão, problema da pobreza e perturbação da ordem social. Em 1656 é fundado o Hospital Geral de Paris, onde eram internados os loucos, e aqueles que contrariavam a ordem social.

Os espaços de internação não tinham nenhum caráter médico, quem decidia a internação não era um médico, mas um juiz. A loucura passa então a ser internada, entendida como erro, sendo silenciada e despojada de sua linguagem, não podendo mais falar sobre si mesma. No século XVIII se inicia uma tentativa de descrever a loucura, os médicos classificadores determinam a demência, a mania, a melancolia, a histeria e a hipocondria. Aos poucos a experiência da loucura vai criando condições para a psiquiatria e a psicologia, quando o ser humano foi se convertendo num objeto de estudo, numa espécie "psicologizável".

Na segunda metade do século XVIII, surgem espaços de internação reservados aos loucos. Nessas instituições o médico se torna a figura de poder sobre o louco. A reclusão cria o alienado, vinculando a dimensão da exclusão com a culpabilidade, convertendo a loucura em "doença mental". O silêncio, o reconhecimento da própria doença e o submetimento ao juízo moral e científico da autoridade médica eram usados como meios de "tratamento" nos asilos de Pinel e Tuke, com táticas de ameaças, humilhações, castigos, privação de alimentos, infantilizando e culpabilizando o louco.

Enfim, o nascimento da psiquiatria acontece a partir de uma reelaboração das formas de sujeição, onde o louco não está mais sujeito às juridições da cidade, mas à norma médica. Eis que no século XX em diante a psicologia e a psiquiatria exercem um papel de dispositivos do poder disciplinar, produzindo enunciados sobre os loucos e determinando suas intervenções sobre estes. O saber-poder psiquiátrico visa normalizar indivíduos, produzindo corpos dóceis, deste modo a psicologia e a psiquiatria se tornaram detentoras da verdade sobre a loucura e o louco e de seu tratamento.


Por Bruno Carrasco, terapeuta e professor, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico-existencial e aconselhamento filosófico. Pensa as questões psicológicas a partir de um viés filosófico, histórico e social. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014.
DÍAZ, Esther. A filosofia de Michel Foucault. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2017.
GUARESCHI; HÜNING; FERREIRA [et al.]. Foucault e a Psicologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.
MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.