Arte e verdade em Nietzsche

Caminhante Sobre o Mar de Névoa, Caspar David Friedrich, 1818

No curso da história da filosofia e das ciências houve uma priorização do conhecimento e da verdade em detrimento de uma percepção artística sobre a vida. O conhecimento científico é destacado pela vontade de verdade, de elaboração racional e lógica sobre a realidade. Essa tendência foi considerada fraca e decadente pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, por valorizar o mundo do pensamento no lugar do corpo e do mundo da vida.

Nietzsche aponta para uma distinção entre a busca da verdade e a postura artística perante a vida, contrariando o valor da verdade para valorizar a vida em suas contradições e transformações. Ele entendia que a vontade de verdade era uma vontade fraca, voltada para a adaptação e conservação. Diferente desta é a vontade forte, expressa na perspectiva artística, criativa e transformadora, que afirma a vida e a experiência, em vez de negá-las em favor do conhecimento.

Rejeitando a ideia de que o conhecimento seria um instinto inato do ser humano, o filósofo argumentou que os saberes foram produzidos e inventados. Não podemos definir o humano exclusivamente pelo conhecimento, tal como se apresenta o "homem sábio" (homo sapiens), nem considerar a ciência como o principal bem da humanidade. De acordo com Nietzsche, não temos um instinto para o conhecimento, mas uma vontade de crença, que nos faz desejar crer ao invés de conhecer.

"A verdade não tem como critérios a evidência e a certeza; tem como condição um esquecimento e uma suposição."
(Roberto Machado, em ‘Nietzsche e a verdade’)

A vontade de verdade não oferece uma melhor aproximação sobre as coisas que percebemos, mas um esquecimento destas, valorizando o conceito e o mundo abstrato do pensamento no lugar do mundo da vida que se apresenta e se transforma a cada instante. Tal vontade é fraca, pois não admite a transformação, a finitude e o inacabamento das coisas, trata-se de uma vontade idealista, que supõe a possibilidade de descrever todo o mundo e as experiências, ao invés de viver elas.

Para Nietzsche, a relação entre verdade e conhecimento não é apenas uma questão epistemológica, mas que envolve aspectos sociais, pessoas e, prioritariamente, morais. Entendendo que a verdade e a mentira têm suas origens na moral, a razão é usada como uma ferramenta para conservar os indivíduos fracos. A verdade não é um ajuste do intelecto à realidade, mas uma convenção que serve a vida social, uma ficção que mantêm uma estrutura moral e uma convivência entre as pessoas.

"O homem não ama necessariamente a verdade: deseja suas consequências favoráveis. O homem também não odeia a mentira: não suporta os prejuízos por ela causados. (...) A obrigação, o dever de dizer a verdade nasce para antecipar as consequências nefastas da mentira. Quando a mentira tem valor agradável ela é muito bem permitida."
(Roberto Machado, em ‘Nietzsche e a verdade’)

Contrariando o valor depositado na ciência e no conhecimento, Nietzsche destaca a superioridade da arte sobre a ciência, por ela não opor verdade a ilusão, mas afirmar integralmente a vida. Enquanto a ciência busca encontrar verdades fora da aparência, a arte aceita a "verdade" do que aparece. A arte trágica afirma da vida de maneira tão intensa que contraria a negatividade da ciência, que nega a própria vida em favor da verdade.

"A arte é mais potente do que o conhecimento, pois ela quer a vida, enquanto o objetivo final que o conhecimento atinge nada mais é do que - o aniquilamento."
(Nietzsche, em ‘Fragmentos póstumos’)

Sua filosofia propõe inverter a relação de forças, negando a negação da vida pela ciência e sua busca incessante da verdade, para evidenciar a arte trágica como um meio para a afirmar da vida, valorizando a arte e a filosofia como estimulantes da vida, que ao invés de buscar verdades se colocam a encarar a vida sem desprezar suas ilusões, implicando a arte na vida, superando a decadência das ciências e da vontade de verdade.

Sua avaliação do valor do conhecimento parte de uma perspectiva da força, onde valorizar a aparência é o mesmo que afirmar a força e a vida. O valor de um conhecimento não é determinado apenas por suas provas lógicas, mas por suas forças e efeitos na promoção ou redução da vida. O filosofar possui um valor estético, que contrasta o trágico com o lógico, utilizando critérios estéticos e valores artísticos para definir qual conhecimento está a favor da vida, uma filosofia trágica.

"O filósofo do conhecimento trágico. Ele domina o instinto desenfreado de saber, mas não por uma nova metafísica. Não estabelece nenhuma nova crença. Sente tragicamente que o terreno da metafísica lhe foi retirado e, no entanto, não pode se satisfazer com o turbilhão confuso das ciências. Trabalha pela edificação de uma nova vida: restitui à arte seus direitos."
(Nietzsche, em ‘Fragmentos póstumos’)

A arte trágica aparece como uma alternativa para a ciência, valorizar a aparência é afirmar a força e a vida. Deste modo, a filosofia trágica afirma a vida enquanto aparência, não busca nenhum idealismo fora da vida, e assim gera uma superabundância de forças para a vida aparente. Segundo o filósofo, o valor de um conhecimento não é determinado por suas provas e argumentos lógicos, mas por suas forças e efeitos: ele potencializa ou reduz a vida?

Sua filosofia nega o privilégio da verdade para afirmar o valor da aparência. A concepção trágica de conhecimento baseia-se na criação artística e na relação que a arte estabelece com a vida, privilegiando o conhecimento como uma potência criadora e salutar. Contrária a esta, a razão é um meio de conservar os indivíduos fracos. A perspectiva trágica se baseia na criação artística e na relação que a arte estabelece com a vida, que não opõe verdade e mentira, certo ou errado, mas privilegia o caráter da força do conhecimento, de sua potência criadora e salutar.

"Contra a oposição metafísica de valores, a arte oferece uma valorização da aparência, da ilusão, que dá conta de um valor essencial da vida menosprezado pela racionalidade."
(Roberto Machado, em ‘Nietzsche e a verdade’)

Ao criticar a vontade de verdade, Nietzsche não se limita a um nível meramente epistemológico, mas o articula a questões sociais e pessoais, entendendo que a verdade e a mentira possuem uma origem na moral. Priorizando o valor estético do filosofar, Nietzsche contrapõe o trágico ao lógico, utilizando critérios estéticos e valores artísticos para definir um conhecimento em favor da vida. Ao negar o privilégio da verdade, ele afirma o valor da aparência e da vida.


Por Bruno Carrasco, terapeuta e professor, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico-existencial e aconselhamento filosófico. Pensa as questões psicológicas a partir de um viés filosófico, histórico e social, pesquisando sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 3 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Petrópolis: Vozes, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira. São Paulo: Hedra, 2007.

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