Psicologia e controle social

Vida no ano 2000, por Jean-Marc Côté, 1972

A psicologia pode ser usada para o controle social, como uma técnica de adaptação, docilidade e ajustamento? Os testes psicológicos medem as "características psicológicas" de cada pessoa, para dizer como as pessoas são e o que devem fazer segundo os critérios das teorias psicológicas, classificando as pessoas em aptas ou não aptas, adequadas ou inadequadas para certas atividades, dividindo em classes e espaços na escola, no trabalho e até mesmo dentro de sua casa.

A psicologia tradicional e institucionalizada é uma tecnologia utilizada para direcionar as pessoas a fazerem o que é esperado delas segundo uma noção de "saúde mental", para a modelagem de seus comportamentos. Porém, a ciência psicológica não deixa claro quem decide qual o comportamento é adequado ou inadequado, quem determina o que é saudável ou doentio psicologicamente. Essas avaliações não partem de noções científicas, mas de valores morais das pessoas que elaboram as teorias.

Os comportamentos entendidos como adequados e desejáveis são inspirados nas normas da sociedade e valores dominantes, conforme a norma social. Ao se utilizar desses paradigmas para as noções de "saudável" e "adequado", a psicologia institucionalizada serve ao ajustamento e controle das pessoas, onde os profissionais apenas reproduzem as técnicas que lhes são ensinadas, sem questionar sobre suas práticas, mantendo os indivíduos na sociedade tal como peças numa máquina, evitando divergências.

Esse controle não é direcionado a todas as pessoas, mas apenas para aquelas que possuem algum "desvio", que divergem de uma norma social. Esses são avaliados como portadores de um "transtorno", passando a ser vistas sob um olhar parcial, psicológico e categorizante, reduzindo a pessoa a categorias patológicas, desumanizando esta. Segundo Georges Canguilhem, a medicina não é uma ciência, mas um conjunto de técnicas e práticas orientada por valores, não sendo possível determinar o normal e patológico de maneira objetiva.

"Diversidade não é doença. O anormal não é o patológico."
(Georges Canguilhem, em 'O normal e o patológico')

Inclusive a avaliação diagnóstica, é uma atividade muito questionável, pois há uma extensa quantidade de perspectivas e categorias sobre o comportamento desviante e uma dificuldade para enquadrar uma pessoa numa delas, pois as categorias não se excluem. Um conjunto de sintomas pode ser classificados em diferentes categorias, além disso, há diferenças de percepção subjetiva de cada profissional sobre as classificações dos sintomas.

Diferente das perspectivas na psicologia e na psiquiatria, se partirmos de um olhar antropológico, as noções de "normal" e "anormal" são entendidas como produções culturais, históricas e relativas à cultura onde se está inserido. Deste modo, o que é entendido como "normal" numa cultura pode ser absolutamente "anormal" em outra. Apesar dessa consideração, a psiquiatria busca uma norma objetiva e universal para determinar as diferenças entre normal e anormal, sem considerar que o "normal" e o "anormal" varia de uma época para outra, de um grupo de pessoas para outro, e até mesmo de uma pessoa para outra.

"Não há critérios precisos no campo da saúde mental que permitam definir o que seja normalidade psíquica."
(Ieda Porchat, em 'O que é psicoterapia')

Os critérios que a psiquiatria utiliza para decidir o que é o comportamento normal ou anormal são estabelecidos com base em convenções de uma época, por isso não são critérios científicos, mas morais. Conforme o psiquiatra húngaro Thomas Szasz, a noção de "doença mental" não passa de uma criação da psiquiatria moderna. O comportamento de uma pessoa nem sempre coincide com as exigências de uma sociedade ou grupo de social específico, mas isto não significa que a pessoa tenha uma doença mental.

Entender que não existem "doenças mentais" não é o mesmo que negar que há pessoas que vivenciam sofrimentos emocionais, muitas vezes em intensidade extrema, e que merecem atenção, cuidado e ajuda. Porém, os sofrimentos emocionais não são necessariamente doenças ou transtornos. Além disso, os comportamentos desviantes não são necessariamente resultantes de transtornos mentais, mas podem ser outras maneiras de ser e se colocar diante da vida.

A transgressão de regras sociais ou de costumes morais não constitui, necessariamente, uma característica de uma doença mental. Uma pessoa pode romper com as regras morais e sociais quando ao atravessar uma situação de estresse ou quando está fazendo uma revisão sobre sua vida e desejando uma mudança para si mesma. O que entendemos por "transtorno", muitas vezes pode ser um momento de transformação pessoal, questionamento e revisão sobre a própria vida.

O modo como a psiquiatria e a psicologia hegemônicas entendem as mudanças de comportamentos, os transtornos e seus tratamentos está baseado numa ideia de uma normalidade e ajustamento moral, muitas vezes atrelado a noção de capacidade produtiva para o trabalho ou para a convivência em sociedade. Como se a saída de um transtorno fosse viver de maneira ajustada ao modo como a sociedade entende por normal.

Fora isso, há também uma distinção econômica quanto ao tratamento proposto. A maioria dos psiquiatras nasceu e cresceu na classe média (médicos), já os pacientes são em sua maioria da classe trabalhadora. Há uma terapia para os pobres e outra para os ricos. A terapia para os pobres visa retornar a pessoa ao trabalho e as suas funções, enquanto a terapia para os ricos propõe o autoconhecimento e melhorar suas habilidades.

Quando atendem pacientes da classe trabalhadora, o atendimento é orientado pelos valores da classe média. O que entendem por comportamentos "decentes" e "apropriados" segue os valores morais da classe média. Com o status e influência da profissão, psicólogos e psiquiatras afetam os modos de vida das pessoas, exercendo seu papel de suposto saber. Os pacientes são geralmente vistos de maneira inferiorizada, referidos por termos como "personalidade inadequada", "imaturidade", "incapaz", entre outros.

O diagnóstico de um paciente piora quando este já foi demitido de diversos empregos, for usuário de alguma droga ou tiver uma vida sexualmente muito ativa. Todas essas características de ordem moral são percebidas pelos profissionais da psicologia e da psiquiatria como disfuncionais ou inadequadas. Por essas e outras há um tom prioritariamente moral nos diagnósticos, e não meramente científico. A psicologia e a psiquiatria não trabalham para a "saúde psíquica", mas para o ordenamento moral.

Os profissionais "psi" submetem a pessoa a uma bateria de testes para identificar seu transtorno, isso parece muito misterioso ao paciente, pois é um trabalho do "especialista", do qual a pessoa que busca atendimento não tem conhecimento sobre seus métodos e teorias. O transtorno entendido como uma condição que a pessoa tem pouca ou nenhuma autonomia para interferir, como algo errado em seu "sistema nervoso", que não tem relação com a pessoa, com sua vida ou com sua história. 

Se as pessoas sofrem de estresse, o tratamento é direcionado para reduzir o estresse, sem colocar em questão a vida que essa pessoa leva e como seus modos de vida proporcionaram a sensação de estresse. Assim, as pessoas vão ficando mais frágeis para lidar com suas questões e dificuldades, qualquer grau de desconforto emocional já passa a ser percebido como algo intolerável que deve ser imediatamente anulado.

A infelicidade deixa de ser parte natural da vida, para se tornar algo que se requer um tratamento, enquanto a felicidade se apresenta como imperativo de uma vida "adequada". O tratamento adquire um caráter de promover uma conduta socialmente "adequada", e quando a pessoa finalmente alcança esta condição já está em condições de receber sua "alta".

Quem é diagnosticado com algum transtorno mental é muitas vezes estigmatizado, rotulado e inferiorizado. Os desviantes são convertidos em bodes expiatórios, onde a sociedade projeta seus males e fracassos, para que os “normais” se validem como bons e saudáveis, invalidando os outros como “maus” e “doentes”.
"Por que os membros ajustados da sociedade reagem com tão implacável selvageria em relação aos seus desviantes? Por que é que tememos e odiamos as pessoas que são diferentes?"
(Nick Heather, em 'Perspectivas Radicais em Psicologia')
Uma alternativa a esse modelo hegemônico seria olhar não apenas para os indivíduos, mas para as relações entre os indivíduos e seu contexto histórico e social mais amplo, tomando contato com suas diferenças e entendendo estas como possibilidades de transformação, permitindo a experimentação de outros modos de vida, não previamente determinados. Deixar de ser um policial da subjetividade da pessoa, mas ajudar as pessoas a encontrarem soluções autênticas e criativas para suas dificuldades.

Possibilitar que pessoas alcancem um maior entendimento sobre seus comportamentos e experiências, inclusive sobre suas relações com outras pessoas e espaços, para poderem fazer melhores escolhas sobre suas vidas. Transformar a psicologia para não ser um produto em favor da manutenção da sociedade de consumo, para se tornar uma atividade realmente emancipadora, que beneficie a todos.


Por Bruno Carrasco, terapeuta e professor, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico-existencial e aconselhamento filosófico. Pensa as questões psicológicas a partir de um viés filosófico, histórico e social, pesquisando sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
BOCK, Ana M. Bahia; GONÇALVES, M. Graça M.; FURTADO, Odair (orgs.). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2001.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
HEATHER, Nick. Perspectivas Radicais em Psicologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
PORCHAT, Ieda. O que é Psicoterapia. São Paulo: Brasiliense, 1989.
SZASZ, Thomas. A Fabricação da Loucura. Rio de Janeiro: Guanabara, 1984.