Foucault e a Psicologia - Guareschi, Hüning (org.)

O livro "Foucault e a Psicologia", organizado por Neuza Maria Guareschi, Simone Maria Hüning e Arthur Arruda Ferreira, propõe problematizar a psicologia a partir das análises e reflexões de Michel Foucault, com o intuito de provocar outras maneiras de se compreender as práticas psicológicas, possibilitando um terreno fértil para transformações.

Seus textos se questionam as premissas, os conceitos e propósitos da psicologia, sem a pretensão de compor uma unidade discursiva, evidenciando as ressonâncias produzidas pelo pensamento foucaultiano na psicologia, produzindo tensionamentos no campo "psi", desacomodando o discurso hegemônico, possibilitando resistência e outros caminhos.

Capítulos: "Para desencaminhar o presente psi: biografia, temporalidade e experiência em Michel Foucault", de Heliana Rodrigues, "A psicanálise e a psicologia nos ditos e escritos de Michel Foucault", de Arthur Ferreira, "Para uma arqueologia da psicologia: ou para pensar a psicologia em outras bases", de Kleber Filho, "Genealogia, contrassaberes e psicologia", de Derek Hook e Simone Hüning, "Ética e subjetivação: as técnicas de si e os jogos de verdade contemporâneos", de Henrique Nardi e Rosane da Silva, e "Efeito Foucault: desacomodar a psicologia", de Simone Hüning e Neuza Guareschi.

Alguns trechos do livro:

Apelando a Nietzsche, Foucault diagnostica, então, a presença do supra-histórico em alguns dos usos da própria história-disciplina: uso monumental (grandes vultos e feitos), antiquário (acentuação da continuidade-tradição) e crítico (julgamento-condenação do passado em nome do presente, tornando o primeiro algo fixo, paralisado e menor).

A proposta foucaultiana, por conseguinte, é a de uma história singularmente crítica e efetiva: a arqueologia dispensa toda arché ou fundamento, construindo/analisando arquivos a partir da massa documental que nos foi legada – ela orienta teoricamente nossos procedimentos; mas somente combinada com a genealogia pode afastar o ranço positivista que a assedia, colocando igual importância nos usos do conhecimento histórico. Daí ressaltar Dean ainda um terceiro termo, presentismo ou história do presente: história feita no presente, sim; história que tenta dar conta do que presentemente somos como sujeitos de conhecimento, ação e moral, decerto; fundamentalmente, porém, história que luta contra compreensões anacronísticas – aquelas que fazem do presente o resultado necessário de um passado aprisionado em significações - e assim nos liberta, parcialmente que seja, para o exercício de formas de pensar, agir e ser...que ainda não existem.

Foucault se refere, assim, a uma experiência – a eficácia das críticas particulares e locais - que faculta o acesso a algo não previsto.

Foucault passa a ver suas pesquisas como portadoras de uma primeira (e, agora, desejável) característica: o caráter local da crítica, "espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, (...) que não tem necessidade, para estabelecer sua validade, da concordância com um sistema comum"". Essa crítica local se dá através de um retorno de saber; melhor dizendo, de uma insurreição dos saberes dominados.

Pela expressão se devem entender: (1) "conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistemas formais", reveladores da "clivagem dos confrontos, das lutas que as organizações formais ou sistemáticas têm por objetivo mascarar"; (2) "uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do conhecimento ou da cientificidade".

A insurreição dos saberes dominados, por conseguinte, tanto comporta blocos de saber histórico – até então dessingularizados no interior de sistemas - quanto revaloriza o saber das pessoas - saber "particular, regional, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade e que (...) deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam". Ao contrário das classificações hegemonicamente aplicadas, esse saber das pessoas não é bom senso nem senso comum: é saber deixado de lado, quando não explicitamente subordinado. Consoante Foucault, a crítica local deve seu impacto exatamente a essa junção entre "o saber sem vida da erudição e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências; em última análise, ao saber histórico da luta".

com Foucault, nada de lições de uma história-passado que no presente encontra seu objetivo; tampouco segredos ocultos de um passado-totalidade inferidos com flexível rigor a partir de um presente qualquer. Algo, porém, ainda surpreende: consoante Foucault, para apreender o vínculo entre o presente e o passado estabelecido na narrativa histórica, é preciso estar atento à relação do presente... com ele mesmo! Melhor dizendo, para que o passado se torne objeto de investigação, demanda-se que "o presente se perceba num movimento de separação de si mesmo (...); no momento em que o presente está deixando de ser o que é, a história se torna possível"

História do presente é história feita no presente sobre um presente... que já não somos mais.

Após a caracterização do trabalho de Foucault como uma filosofia dos dispositivos - repúdio aos universais, afastamento do eterno em favor da criação.

Há três termos em jogo nesse fragmento: o ontem, o hoje e o passado. O ontem é uma dimensão do presente: é o que somos, mas, igualmente, o que estamos deixando de ser. O hoje - designado, por Deleuze, como o atual - é o que estamos nos tornando. Finalmente, o passado é o que se constitui, na forma de história, a partir da distância instaurada entre o ontem (o presente) e o hoje (o atual).

Nessa perspectiva, o passado não é o que nos fundamenta. Longe de ser fonte de nossa identidade, ele é faccionado a partir de nossa dispersão - a diferença presente/atual -, facultando uma reflexão sobre ela e alimentando experimentações com o novo, com o que está em vias de ser. Porque o atual não é esboço de um futuro livre e desalienado, mas o agora de nosso devir, desejável como tempo outro, nunca como completude, realização ou reconciliação.

Foucault integra a experiência à reflexão historiográfica na qualidade de uma inquietação que se torna ponto de partida para um trabalho teórico, ético e político.

Nesse sentido, de acordo com Nietzsche, não caberia relacionar os homens a seu tempo; ao contrário, seria desejável pensá-los, a cada momento, em luta contra seu tempo. Disso, justamente, nos fala Foucault com sua história-ficção - história do presente construída contra o presente, a partir daquilo que este já carrega de devir-outro, de intempestivo.

Foucault retruca que o problema principal não está em trazer à luz "a significação da experiência quotidiana para reencontrar, no que sou, o sujeito fundador", como acontece no projeto fenomenológico; a experiência, ao contrário, tem por função "arrancar o sujeito de si mesmo, fazer com que ele não seja mais ele mesmo", em um empreendimento de "des-subjetivação""

Um livro-experiência, afinal, em contraste com tantos e tantos livros-verdade, livros-demonstração, que nos intoxicam de saberes psicológicos pretensamente nobres, orgânicos, maiores, os quais, como que distraidamente, ignoram as condições de produção da dita "ciência" que veiculam - eis a provocação primeira da aproximação entre "Foucault e a Psicologia", aventura da presente publicação.


Fonte:
GUARESHI, Neuza M. F.; HÜNING, Simone Maria; FERREIRA, Arthur A. L. Foucault e a Psicologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.

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