Nietzsche, vida como obra de arte - Rosa Dias

O livro "Nietzsche, vida como obra de arte", escrito por Rosa Dias, propõe pensar a relação entre arte e vida, com base no pensamento do filósofo alemão. Rosa Dias é doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora de diversos livros sobre Nietzsche.

Friedrich Nietzsche propõe um pensamento que reavalia os modos de existência, em suas complexas conexões com o mundo e consigo mesma, possibilitando se avaliar a partir da perspectiva das forças e potências, dando importância ao corpo e a transformação artística de si.

Alguns trechos do livro:

Mantendo a arte de viver em primeiro plano, Nietzsche investe todo o seu saber na tarefa de descobrir e inventar novas formas de vida. Convida o ser humano a participar de maneira renovada na ordem do mundo, construir a própria singularidade, organizar uma rede de referências que o ajude a se moldar na criação de si mesmo. E tudo isso só pode ser feito contra o presente, contra um "eu" constituído.

A vida é um conjunto de experimentações que o ser humano vivência. Por essência, ela é criação generosa de formas; é artista e, como acontece em toda atividade artística, não visa a nada fora da própria atividade. Tal como o pintor que pinta por pintar e o músico que toca por tocar, a vida vive por viver. É preciso viver de tal modo que viver não tenha nenhum sentido — e é justamente isso que dá sentido à vida.

A vida foi definida a partir da ótica da arte, que privilegia o aspecto de intensificação da potência. O conceito de vida adquiriu uma nova significação — vontade de potência — quando Nietzsche privilegiou as forças criadoras em relação às forças inferiores de adaptação. Viver não é apenas adaptar-se às circunstâncias externas: a vida é, antes de tudo, atividade criadora.

Como atividade criadora, ela não quer conservar-se; antes de tudo, quer crescer. Como vontade de potência, apropria-se de alguma coisa para impor-se uma forma, um sentido, uma função, uma nova direção.

Interpretar o mundo não é conhecê-lo, mas criá-lo. É criando o nosso mundo que nos tornamos cocriadores do mundo.

Visto pela ótica da vida e da arte, ele é, indubitavelmente, um dizer sim à vida, um dizer sim ao ato criador.

Nietzsche diminui ainda mais a separação entre vida e arte; pensa tornar possível a criação de belas possibilidades de vida.

A vida, como vontade de potência, como eterno superar-se, é, antes de tudo, atividade criadora e como tal é alguma coisa que quer expandir sua força, crescer, gerar mais vida.

O que chamamos de corpo tem muito mais importância; o resto é um pequeno acessório.

O corpo não é somente superior à consciência: é anterior.

Nossos pensamentos e nossas apreciações de valor são expressões dos impulsos. Para Nietzsche, o homem se insere na vida pelo seu corpo. O corpo é que é o centro da interpretação e organização do mundo. O corpo é pensador. A crítica nietzschiana da metafísica implica a reabilitação do corpo. Eis o essencial: tomar o corpo como ponto de partida é fazer dele o fio condutor. O corpo é um fenômeno muito mais rico e autoriza observações mais claras. A crença no corpo é bem mais estabelecida do que a crença no espírito.

Para que uma interpretação seja possível, é preciso que cada um dos impulsos tome uma posição. Os impulsos têm uma opinião, dizem alguma coisa. Pensar é uma relação dos impulsos entre si

Assim sendo, ao definir a vida como vontade de potência e privilegiar as forças criadoras sobre as forças inferiores de adaptação, Nietzsche tinha como perspectiva trazer de volta para a filosofia a unidade criadora vida e pensamento — unidade perdida quando se consolidou a autoridade do filósofo como porta-voz do mundo suprassensível.

A arte é essencialmente afirmação, divinização da existência. Nietzsche valoriza os impulsos estéticos como condição de criação de novas condições de existência. Depois que a tradição européia negou a vida em nome de valores ditos superiores.

A experiência artística foi posta a serviço da liberação da vontade de potência, das forças expansivas transfiguradoras e afirmadoras da vida, contra a hegemonia do saber teórico, que não faz mais do que negar a vida. A vontade de potência é a força capaz de unificar, hierarquizar, dar forma; é a mais alta potência da arte.

Interpretar é criar. Existir é criar. Pensar é criar e dar. Perguntamos: o que criamos? Criamos o mundo, desde que não o pensemos como entidade abstrata; criamos as coisas, que não são realidades neutras, mas valores.

Os valores não têm uma realidade ontológica — são o resultado de uma produção, de uma criação. Não são fatos, são interpretações introduzidas pelo homem no mundo. O valor não é nem absoluto, nem relativo a um absoluto: não há valores eternos: eles estão sempre para ser criados.

Os valores foram criados, são interpretações projeta das nas coisas, mas não nascem fruto da fantasia. Procedem da vontade de potência. Entretanto, é preciso perguntar: a partir de que aspecto da vontade de potência foram criados? As apreciações de valor exprimem as condições de conservação ou de crescimento? Aumentam nossa potência de existir ou são valores que a empobrecem? São conseqüência de uma insatisfação diante do real ou a expressão de um reconhecimento pelo qual se goza? São expressão de uma vida completa ou obstaculizada? É a fome ou a abundância que se torna criadora? Para Nietzsche, o ponto de vista do "valor" é o das condições de conservação e intensificação com respeito a formações complexas de duração relativa da vida no interior do devir.

O mundo dos valores, o único existente, é um mundo das perspectivas; é resultado das avaliações de uma perspectiva particular, da conservação ou intensificação da potência.

Uma interpretação única e definitiva não existe. A concepção artística do mundo requer uma multiplicidade de perspectivas.

Nietzsche contrapõe a vontade criadora e, com esse objetivo, procura impedir a existência de se fixar, de ser expressão do instinto de conservação, e nos convida a conceber a vontade criadora como constantemente autoinventora. A doutrina da vontade criadora privilegia a atividade. É uma nova maneira de pensar que se aplica ao devir, opõe-se à metafísica, que busca o estável e a permanência. O perene não é o sujeito criador, nem o objeto criado, mas uma ação, uma ação contínua, um fluxo de vida constante.

Criar é colocar a realidade como devir.

O ideal não é outra coisa senão uma forma de fraqueza e de fadiga. Essa maneira de se conduzir empobrece e torna as coisas anêmicas.

A vontade criadora se constitui numa relação essencial com o tempo. O tempo é a única via do criador.

O querer deve libertar a vontade de seu não à vida, deve abrir para ele o caminho do sagrado sim. Dizer e fazer o sim é reconhecer que não há nada de fixo, reconhecer que há sempre alguma coisa a destruir, isto é, a criar. E esse sim à vida afirma justamente aquilo que o espírito de vingança nega: o tempo e o seu passar.

O devir, afirmado pelo ato de querer, redimido pelo querer que quer com toda a sua vontade, transfigurado pelo poder da afirmação é possibilidade de criação contínua.

Nietzsche mostra que os criadores são aqueles que se tornam, eles mesmos, o presente. O presente ligado ao sim criador implica a duração como passado e futuro. O presente é uma duração, mas uma duração que não cessa de destruir a si mesma, de inventar cotidianamente jogos cada vez mais delicados.

A vontade de crescer, de dar forma, de devir, que é próprio da vontade criadora, quer o presente, o inesperado, o acaso.

A vontade de crescer, de dar forma, de devir, de intensificar a potência quer o acaso. Ele não é um incidente que devemos afugentar, mas o elemento essencial que determina a plasticidade da vontade criadora.

O criador será definido pela faculdade de esquecer e pelo poder de criar; o ressentido, pela prodigiosa memória e pelo poder de conservar.

O criador sabe esquecer, não leva muito a sério seus contratempos e malfeitos; mas a reflexão de Nietzsche não para por aí. O criador não sabe apenas esquecer: sabe também recordar a tempo. É necessário ter duas visões das coisas: a histórica e a não histórica. Todo ato, para ser criado, exige o esquecimento: é impossível criar-viver sem esquecer. Do mesmo modo, todo ato criador exige a recordação: é impossível criar-viver sem relembrar. O criador não renega a tradição; pelo contrário, retoma-a para redimensioná-la. A faculdade ativa do esquecimento é capaz de assimilar o passado, transformá-lo e transfigurá-lo.

A faculdade ativa do esquecimento traz o criador para o presente; contudo só há presente para aqueles que redimensionam o passado a partir do presente.


Fonte:
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
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